Professores Eduardo Kenedy e Ricardo Lima
1) A Hipótese Inatista
O inatismo linguístico sustenta a tese de que a predisposição para a linguagem é uma característica biológica exclusiva do Homo sapiens, sendo uma postulação abstrata e não um achado empírico sobre o mundo concreto, formulada por um um linguista teórico, Noam Chomsky.
Ele apenas apresentou a hipótese de que existam, na espécie humana e só nela, materiais genéticos que se destinem à aquisição e ao uso da linguagem. A confirmação ou não dessa hipótese como um fato do mundo da genética caberá à pesquisa biológica do futuro. Utiliza-se o termo faculdade da linguagem para fazer referência à essa dotação biológica.
É essa faculdade assumida como inata que possibilitará à criança analisar os estímulos da língua do ambiente (a língua-E) de forma a construir uma competência linguística (a língua-I).
Podemos entender que não é correto dizer que a competência linguística seja inata. Como se vê na figura, a competência linguística é, na verdade, o resultado de um processo.
O que temos ao nascer é a dotação genética que nos possibilita a aquisição da língua do ambiente, seja ela qual for. Dessa forma, em contato com os dados de uma língua-E, nossa faculdade da linguagem será capaz de encontrar as informações suficientes e necessárias para construir, ao longo de alguns anos, nosso conhecimento sobre a fonologia, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semântica e a pragmática dessa língua.
Mesmo que a língua do ambiente de uma criança se modifique no curso da aquisição da linguagem, no caso de, por exemplo, de uma mudança súbita de uma comunidade lusófona para um ambiente anglófono, a faculdade da linguagem presente nessa criança será capaz de reorganizar os dados da experiência de modo a construir conhecimento sobre esses novos estímulos linguísticos.
Os estímulos linguísticos, por eles mesmos, não são o suficiente para a construção de uma competência. Não é qualquer organismo que, em virtude de treinamento com estímulos linguísticos, poderá construir conhecimento sobre a uma língua – é imprescindível que esse organismo seja dotado da faculdade da linguagem, porém os estímulos são uma condição necessária para a aquisição de conhecimento linguístico.
A competência linguística é, por conseguinte, o resultado do dinâmico processo de integração entre os estímulos da língua ambiente e a faculdade da linguagem radicada no organismo humano.
2) Natureza versus cultura
Os debates contemporâneos sobre natureza x cultura na formação da cognição humana são a herança da milenar discussão entre racionalistas e empiristas, que remonta, pelo menos, a Platão e Aristóteles. Racionalistas como René Descartes (1596-1650) afirmavam que o conhecimento humano advém das faculdades mentais naturais de nossa espécie, chamadas na época de razão, daí o termo racionalismo. Por sua vez, empiristas como John Locke (1632-1704) sustentavam que não existe uma “natureza humana” e todos os tipos de conhecimentos possíveis são instanciados no cérebro humano através da experiência sensitiva do indivíduo em seumundo empírico. Foi com o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) que a dicotomia racionalismo X empirismo seria superada. Kant concluiu que o conhecimento humano resulta da integração entre o mundo dos sentidos e as faculdades mentais que interpretam a experiência empírica.
Após a síntese kantiana, no entanto, a querela racionalismo X empirismo não cessou. Pelo contrário, ela ainda continua vivida nas disputas ideológicas e políticas que estão por detrás das discussões sobre o pape da natureza e o papel da cultura na formação da cognição humana.
O cotejo entre os livros O instinto de linguagem, de Steven Pinker, e O debate sobre o instinto da linguagem, de Geoffrey Sampson, poderá revelar que os fundamentos do embate são político-ideológicos e não científicos. Também o livro Guerras linguísticas, de Randy Harris, revela a essência irracional da disputa entre nativistas e culturalistas nos estudos da linguagem.
3) As versões Fraca e Forte do Inatismo
O inatismo linguístico, da maneira como foi originalmente formulado por Chomsky, deve ser considerado uma hipótese forte sobre a faculdade da linguagem. Dizemos que a hipótese inatista chomskiana é forte justamente porque, segundo ela, todas as informações especificamente linguísticas devem estar em alguma medida précodificadas no genoma do Homo sapiens.
Como alternativa à hipótese inatista forte, estudiosos gerativistas mais moderados e mais interdisciplinares, como os psicólogos cognitivos Steven Pinker (da Universidade de Harvard) e Gary Marcus (da Universidade de Nova
Iorque) e o linguista Paul Smolensky (da Universidade de Johns Hopkins), sustentam a hipótese fraca. Nessa, assumimos que a faculdade da linguagem seja apenas uma disposição biológica, um conjunto de instruções genéticas que põem os neurônios humanos em estado de alerta máximo para a identifi cação de propriedades linguísticas nos estímulos da língua do ambiente. Essas instruções seriam uma espécie de Mecanismo de Aquisição da Linguagem (Language Acquisition Device – LAD, na sigla em inglês). Tais instruções genéticas devem ser interpretadas como um grande conjunto de neurônios que são especializados na construção do conhecimento linguístico.
A hipótese fraca assume que os princípios linguísticos na verdade emergem durante o processo de aquisição da língua do ambiente, à medida que os neurônios destinados à linguagem formam sinapses entre si, sendo que o mínimo suficiente e necessário é que nossos neurônios sejam capazes de interpretar todos os detalhes da informação linguística disponível no ambiente, graças à altíssima sensibilidade deles a esse processo.
Por outro lado, no início do século XXI, um geneticista inglês chamado Anthony Monaco, professor da Universidade de Oxford e integrante do Projeto Genoma Humano, anunciou a descoberta do que poderá ser o primeiro gene que, aparentemente, está associado à competência linguística humana: o FOXP2. Ele proclamou sua possível descoberta após estudar diferentes gerações dos K.E., uma família inglesa de classe média, cujos distúrbios diziam respeito à conjugação verbal, à distribuição e à referencialidade dos pronomes, à elaboração de estruturas sintáticas complexas, como as orações subordinadas etc. Monaco analisou amostras de DNA dessa família e descobriu que uma única unidade de DNA de um único gene estava corrompida: o FOXP2.
O FOXP2 é um dos 70 genes diferentes que compõem o cromossomo 7, que é responsável pela arquitetura genética do cérebro humano. Ou seja, trata-se de um gene que cria neurônios, neurotransmissores e afins. Esse gene, o FOXP2, possui 2.500 unidades de DNA, e só uma delas apresentava problemas na genética da família K.E. Monaco estava convencido de que esse gene deveria ser, pelo menos em parte, responsável pela capacidade linguística humana. O FOXP2 é um gene existente também noutros primatas, como chimpanzé e gorilas, porém em quantidade muito reduzida. Isso pode explicar, por exemplo, porque a capacidade de comunicação linguística é tão limitada nesses animais.
4) Alternativas à Hipótese Inatista
O filósofo americano Hilary Putnam (da Universidade de Harvard) afirmou, em resposta à Chomsky, que a universalidade da linguagem e a rapidez da aquisição da língua do ambiente pela criança nada têm a ver com supostas predisposições inatas para um tipo de comportamento. Noutra contra-argumentação, Putnam reconhece que a rapidez da
aquisição da linguagem é impressionante. Mas, continua, também é de impressionar a rapidez com que uma criança aprende a segurar uma bola e arremessá-la logo em seguida. “Deve haver na biologia humana genes especializados em segurar e arremessar bolas?”, fulmina o filósofo. São sofismas. Você certamente já compreendeu que esse tipo de embate político e ideológico não faz parte da boa agenda de pesquisa das ciências. Portanto, podemos ignorar críticas como as de Putnam e passar a apresentar as hipóteses sérias que a pesquisa científica vem elaborando como alternativas ao nativismo linguístico.
5) A Hipótese da Teoria da Mente segundo Tomasello
O psicólogo americano Michael Tomasello (diretor do Instituto de Antropologia Evolutiva da Universidade Max Planck, em Leipzig, Alemanha) é um dos mais importantes críticos do inatismo. Tomasello argumentou, em diversos momentos de sua obra e, principalmente, no livro Origens culturais da aquisição do conhecimento humano (1999), que a aquisição de uma língua natural pelas crianças decorre da integração de diversas habilidades mentais não especificamente linguísticas, sendo que uma das mais importantes seria a capacidade que nós humanos possuímos de conseguirmos nos colocar imaginariamente no lugar das outras pessoas e intuir como elas devem pensar e interpretar os eventos do mundo. Chamamos essa capacidade imaginativa de “teoria da mente”. Dizendo de outra forma, Tomasello levantou a hipótese de que é o desenvolvimento da “teoria da mente” que faz a linguagem emergir na cognição de uma criança.
A criança, de alguma forma, é capaz de perceber a referência e a INTENCIONALIDADE (capacidade humana de se dirigir e se concentrar em certos e eventos do mundo) no uso das palavras e discursos ao seu redor e, então, descobre que poderá usar os mesmos termos quando quiser evocar a mesma referência e a mesma intencionalidade na mente das outras pessoas. É essa capacidade de imaginar o que se passa na cabeça das outras pessoas, compreendendo-as como seres portadores de mentes e de intencionalidade, que distinguiria o comportamento humano do comportamento animal. Para o estudioso, é justamente essa habilidade que dá à luz a capacidade linguística humana.
6) Hipótese Conexionista
É uma teoria sobre a mente humana segundo a qual a aquisição e o uso de conhecimentos, como, por exemplo, a competência linguística, decorrem exclusivamente da formação de padrões de comportamento ao longo da experiência de um ser humano. Os neurônios responsáveis pelo comportamento humano não possuem nenhuma especificação prévia sobre os tipos de sinapses que devem fazer no curso da formação do cérebro de uma pessoa, eles formam sinapses de acordo com as regularidades advindas dos estímulos do ambiente e não em função de alguma pré-especificação genética, descartando o inatismo e também a modularidade da mente.
Dessa forma, podemos entender que, de acordo com a abordagem conexionista, a cognição humana é resultante do aprendizado pela experiência, no processo de tentativa e erro regulado pelos estímulos ambientais: “a cognição humana emerge das conexões entre os neurônios, mas não é dada previamente”.
O conexionismo vem alcançando relativo sucesso na inteligência artificial e nas ciências da computação. Muitos softwares conexionistas são capazes de criar sinapses entre neurônios artifi ciais, as chamadas redes neurais artificiais ou redes conexionistas. O que há de mais importante em tais redes é que elas vêm revelando capacidades de aprendizado através da experiência, mais ou menos como o cérebro humano é capaz de fazer. Por exemplo, Patrick Grim (da State University of New York at Stony Brook) reportou o caso de uma dessas redes neurais artificiais que conseguiu aprender a reconhecer ambientes nos diferentes tipos de casas humanas. O interessante é que essa rede conexionista não foi pré-programada para reconhecer ambientes. Ela apenas foi instruída previamente com noções básicas como reta, curva, ângulo e demais rudimentos de geometria e, de posse dessas informações, foi capaz de interpretar os estímulos do ambiente de modo a gerar conhecimento (aprender) sobre ambientes domésticos.
7) O Inatismo enfrenta suas Alternativas
Nenhuma das duas abordagens pode ser considerada radicalmente anti-inatista.
A proposta de Tomasello também deve ser submetida ao problema de Platão. Afinal, de onde viria a capacidade humana de adquirir uma “teoria da mente”? Muito provavelmente, a disposição humana para a “teoria da mente” seja uma dotação natural de nossa espécie. Não seria isso um tipo diferente de inatismo?
No caso da rede neural artificial que aprendeu a reconhecer ambientes, ela possuía muitas informações prévias, isto é, havia nessa rede uma grande quantidade de programação “inata”. Uma rede conexionista é, na verdade, um programa de computador criado por um programador conexionista. Nesse programa, estão especificadas todas as informações que a rede precisar ter para ser capaz de aprender com sua experiência. Por exemplo, a rede que aprendeu a reconhecer ambientes não criou essa capacidade a partir do nada, do absoluto vazio de uma tabula rasa. Pelo contrário, tal rede foi pré-capacitada com noções fundamentais de geometria, sem as quais o aprendizado não teria sido possível. Ora, com isso estamos dizendo que as redes conexionistas nunca são inatas. É verdade que todas elas aprendem novos comportamentos a partir da experiência, mas esse aprendizado pressupõe um “programa de aprender” – justamente como a hipótese inatista propõe. Diante disso, podemo-nos perguntar: se as próprias redes conexionistas nunca podem ser “inatas”, como o cérebro humano o seria?
Por outro lado, a “teoria da mente” de Tomasello e o conexionismo são hipóteses radicalmente opostas à modularidade da mente. Ambos defendem a ideia de que a linguagem humana emerge da conjugação de diferentes domínios cognitivos não especificamente linguísticos. Isto é muito diferente das hipóteses do gerativismo, que, como você já sabe, assume que a linguagem é um módulo cognitivo específico e altamente especializado na informação linguística. Portanto, a principal diferença entre o gerativismo e as suas alternativas apresentadas nesta seção da aula não parece ser o inatismo em si mesmo, mas, sim, a modularidade da mente. Em outras palavras, o inatismo que Tomasello e o conexionismo rejeitam é o inatismo da disposição natural específica para a linguagem, mas não qualquer tipo de inatismo.
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