José Luís Jobim
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Texto e História: Segunda Abordagem
A
imagem do texto como algo que permanece para além da morte do autor
ou do seu primeiro público é algo recorrente na memória ocidental
e parece ter tido um papel importante, inclusive na definição
moderna de História.
Krzisztof
Pomian, por exemplo, radicaliza a importância do texto, dizendo que
o modo de produzir adotado pelos historiadores, a partir de Leopold
von Ranke (1795-1886), frequentemente considerado como o pai da
"História científica", consistia em tornar obrigatório,
com o máximo rigor na prática da pesquisa e da escrita, na
avaliação de obras publicadas e em primeiro lugar na educação
superior, o que poderíamos chamar de dogma fundamental da história
acadêmica: o passado não pode ser conhecido, exceto através da
mediação das fontes, e as únicas fontes são as escritas. Em
resumo: a história é feita de textos (POMIAN, 1999, p. 34).
O
professor Hans Ulrich Gumbrecht acredita que, no limiar do século
XXI, os estudiosos têm demonstrado uma fascinação em “falar com
os mortos”. Para ele, haveria um estilo de escrever e encenar a
história hoje cuja principal (se não única) ambição residiria em
fazer-nos esquecer de que o passado não está mais presente.
Se
o discurso da História de certo modo cria no presente a noção da
ausência do que já existiu no passado, e este discurso propõe-se
como “re-presentação” do que não pode mais ser presente, então
a obra literária pode ser vista como uma espécie de paradoxo,
porque ao mesmo tempo pode ser percebida como um traço do passado e
como um objeto do presente.
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Os Estudos Literários e a História
Uma
abordagem histórica daqueles textos não deveria ignorar vários
aspectos, entre eles as suas categorias constitutivas e o contexto
que circunscreve o estabelecimento destas categorias e dos próprios
textos como instâncias delas.
Talvez
a crença
de que é possível a existência de matrizes “a-históricas” ou
quadros de referência neutros, “imparciais”, a partir dos quais
possamos julgar todos os enunciados com pretensão à validade
irrestrita – crença esta fortemente impulsionada, na modernidade,
pelo desenvolvimento das Ciências Físico-matemáticas – tenha
alimentado nosso desejo de podermos escapar à contingência.
No
entanto, principalmente no âmbito das chamadas Ciências Humanas, é
difícil ignorar a historicidade do saber, que começa com a própria
definição do que se considera relevante conhecer. Neste âmbito,
não podemos deixar de levar em conta que há questões e pontos de
vista que já foram considerados extremamente relevantes em outros
momentos históricos, mas que deixaram de sê-lo depois.
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Texto e História: Períodos Literários
No
caso da cultura brasileira, quando se fala em história literária
nas escolas, parece que a referência básica são os chamados
“períodos literários” (ou melhor, “estilos de época”, como
se costuma designá-los). Estes são mostrados com frequência como
entidades óbvias, autoevidentes, evitando-se na maior parte das
vezes todos os problemas teóricos que a sua construção conceitual
abriga.
Antonio
Candido já advertia, no segundo volume da mais famosa história da
literatura brasileira: “Em história literária, basta estabelecer
uma divisão para vê-la escorregar entre os dedos, arbitrária e
insuficiente, embora necessária” (CANDIDO, 1959, p. 295).
Quando
se faz a análise de obras singulares, pode-se também evocar o nome
do “período literário”, ou da "seção de tempo dominada
por um sistema de normas literárias" (WELLEK & WARREN,
1970) a que elas pertenceriam. A ideia por trás é dar um nome ao
contexto no qual o texto surgiu. Daí, derivam as várias tentativas
de descrever e delimitar os períodos, estabelecendo ligações entre
as obras literárias e as outras manifestações históricas vigentes
no momento de sua criação e recepção. Criam-se então várias e
sucessivas denominações.
O
“conteúdo” de um período literário é o sentido formado tanto
por aquilo que o período significa para a cultura em que foi
constituído – e que explica por que determinados cursos de ação
em certas circunstâncias foram possíveis e outros foram descartados
– quanto por aquilo que ele significa para a cultura que se
apropria dele, gerando uma unidade de sentido para o que se evoca,
revisa e/ou cria.
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O Trabalho Teórico na História da Literatura
Pode-se,
por exemplo, tratar do inventário de mudanças nas descrições do
que é literatura; averiguar por que e como essas mudanças se deram;
indagar sobre a autoconsciência dos produtores destas descrições
no passado; ou sobre a nossa própria autoconsciência, ao
examinarmos a deles. Pode-se examinar como se configuram visões de
ou
sobre
a
literatura em estruturas sociais, tanto de “dentro” de um
período, na perspectiva produzida por este período sobre si
próprio, quanto de “fora”, na visão que outro período lança
sobre ele.
Para
compreender o roteiro das mudanças, pode-se tratar de instituições,
maneiras de pensar, modos de escrever que se procurou apagar ou que
apesar de tudo sobreviveram. É possível também fazer uma série de
coisas. Podemos, por exemplo, trabalhar:
• com
as descrições de autores, obras, períodos; com sua aprovação ou
reprovação por vários e sucessivos públicos; com os alegados
fundamentos desta aprovação ou reprovação;
• com
a escolha de temas e interesses;
• com
a relação entre o conhecimento histórico e os problemas e
concepções dominantes da cultura do período em que foi escrito;
•
com
os processos ou argumentos, utilizados para justificar uma
interpretação
histórica;
•
com
a temporalidade dos discursos de
e
sobre
a
literatura, inseridos em quadros de referência de diferentes visões
de mundo, nas quais se expressa a complexidade das formas de
representação da realidade;
• com
a escrita da história literária como evento também histórico,
cujos enunciados pagam necessariamente tributo ao momento de
enunciação;
•
com
o sentido atribuído às formas com que se produz o discurso
histórico de
e
sobre
a
literatura.
A
análise desse discurso poderia inclusive ampliar nossa compreensão
sobre a configuração e o papel social dele, relacionando-o: com os
programas de vida que comunidades humanas inventaram no passado e com
as representações que foram criadas para preencher seu imaginário;
ou com as justificativas necessárias para estas invenções, a ponto
de, às vezes, pela imposição de crenças coletivas, operadas
socialmente, transformá-las de possibilidades em necessidades. Se
nos afastamos de uma concepção de História da Literatura como o
inventário de uma continuidade cumulativa de textos, podemos também
propor o estudo histórico dos conceitos e da terminologia empregados
nos discursos de
e
sobre
a
literatura.
Podemos
investigar:
• as
comunidades acadêmicas e/ou literárias, organizadas em torno de
conceitos compartilhados;
• a
organização de campos, a partir de conceitos comuns – pesquisando
sua duração, seu lugar, sua relação com outros campos;
• a
mudança de conceitos, terminologias e quadros de referência
disciplinares, como indicativo possível de mudanças nos critérios
de objetividade (e, portanto, nos objetos);
• o
âmbito de sentido dos conceitos e terminologias em seu contexto de
produção, e a diferença entre a recepção destes, naquele
contexto e em outros posteriores;
• a
relação destas mudanças com o ambiente sociocultural em que se
inserem, a partir do qual podem ser vistas como sintoma, efeito,
causa, vestígio ou prenúncio de algo;
• os
termos e conceitos cuja reiterada presença e aparente permanência
encobrem diferenças de “conteúdo” no seu emprego em diversos
períodos;
• a
genealogia, circulação, predominância ou posição secundária de
quadros conceituais e terminológicos;
• o
conceito como uma forma única de aglutinar e relacionar determinadas
referências vigentes em um momento histórico.
No
entanto, mais importante do que as propostas em si é a própria
consideração de que, em qualquer destes empreendimentos possíveis,
é necessário estar atento às várias dimensões de trabalho
teórico envolvidas.
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