domingo, 10 de abril de 2016

Teoria da Literatura I - Aula 6: A teoria e a periodização histórica da literatura

José Luís Jobim

  1. Texto e História: Segunda Abordagem

A imagem do texto como algo que permanece para além da morte do autor ou do seu primeiro público é algo recorrente na memória ocidental e parece ter tido um papel importante, inclusive na definição moderna de História.

Krzisztof Pomian, por exemplo, radicaliza a importância do texto, dizendo que o modo de produzir adotado pelos historiadores, a partir de Leopold von Ranke (1795-1886), frequentemente considerado como o pai da "História científica", consistia em tornar obrigatório, com o máximo rigor na prática da pesquisa e da escrita, na avaliação de obras publicadas e em primeiro lugar na educação superior, o que poderíamos chamar de dogma fundamental da história acadêmica: o passado não pode ser conhecido, exceto através da mediação das fontes, e as únicas fontes são as escritas. Em resumo: a história é feita de textos (POMIAN, 1999, p. 34).

O professor Hans Ulrich Gumbrecht acredita que, no limiar do século XXI, os estudiosos têm demonstrado uma fascinação em “falar com os mortos”. Para ele, haveria um estilo de escrever e encenar a história hoje cuja principal (se não única) ambição residiria em fazer-nos esquecer de que o passado não está mais presente.

Se o discurso da História de certo modo cria no presente a noção da ausência do que já existiu no passado, e este discurso propõe-se como “re-presentação” do que não pode mais ser presente, então a obra literária pode ser vista como uma espécie de paradoxo, porque ao mesmo tempo pode ser percebida como um traço do passado e como um objeto do presente.


  1. Os Estudos Literários e a História

Uma abordagem histórica daqueles textos não deveria ignorar vários aspectos, entre eles as suas categorias constitutivas e o contexto que circunscreve o estabelecimento destas categorias e dos próprios textos como instâncias delas.
Talvez a crença de que é possível a existência de matrizes “a-históricas” ou quadros de referência neutros, “imparciais”, a partir dos quais possamos julgar todos os enunciados com pretensão à validade irrestrita – crença esta fortemente impulsionada, na modernidade, pelo desenvolvimento das Ciências Físico-matemáticas – tenha alimentado nosso desejo de podermos escapar à contingência.
No entanto, principalmente no âmbito das chamadas Ciências Humanas, é difícil ignorar a historicidade do saber, que começa com a própria definição do que se considera relevante conhecer. Neste âmbito, não podemos deixar de levar em conta que há questões e pontos de vista que já foram considerados extremamente relevantes em outros momentos históricos, mas que deixaram de sê-lo depois.


  1. Texto e História: Períodos Literários

No caso da cultura brasileira, quando se fala em história literária nas escolas, parece que a referência básica são os chamados “períodos literários” (ou melhor, “estilos de época”, como se costuma designá-los). Estes são mostrados com frequência como entidades óbvias, autoevidentes, evitando-se na maior parte das vezes todos os problemas teóricos que a sua construção conceitual abriga.

Antonio Candido já advertia, no segundo volume da mais famosa história da literatura brasileira: “Em história literária, basta estabelecer uma divisão para vê-la escorregar entre os dedos, arbitrária e insuficiente, embora necessária” (CANDIDO, 1959, p. 295).

Quando se faz a análise de obras singulares, pode-se também evocar o nome do “período literário”, ou da "seção de tempo dominada por um sistema de normas literárias" (WELLEK & WARREN, 1970) a que elas pertenceriam. A ideia por trás é dar um nome ao contexto no qual o texto surgiu. Daí, derivam as várias tentativas de descrever e delimitar os períodos, estabelecendo ligações entre as obras literárias e as outras manifestações históricas vigentes no momento de sua criação e recepção. Criam-se então várias e sucessivas denominações.

O “conteúdo” de um período literário é o sentido formado tanto por aquilo que o período significa para a cultura em que foi constituído – e que explica por que determinados cursos de ação em certas circunstâncias foram possíveis e outros foram descartados – quanto por aquilo que ele significa para a cultura que se apropria dele, gerando uma unidade de sentido para o que se evoca, revisa e/ou cria.

  1. O Trabalho Teórico na História da Literatura


Pode-se, por exemplo, tratar do inventário de mudanças nas descrições do que é literatura; averiguar por que e como essas mudanças se deram; indagar sobre a autoconsciência dos produtores destas descrições no passado; ou sobre a nossa própria autoconsciência, ao examinarmos a deles. Pode-se examinar como se configuram visões de ou sobre a literatura em estruturas sociais, tanto de “dentro” de um período, na perspectiva produzida por este período sobre si próprio, quanto de “fora”, na visão que outro período lança sobre ele.
Para compreender o roteiro das mudanças, pode-se tratar de instituições, maneiras de pensar, modos de escrever que se procurou apagar ou que apesar de tudo sobreviveram. É possível também fazer uma série de coisas. Podemos, por exemplo, trabalhar:
com as descrições de autores, obras, períodos; com sua aprovação ou reprovação por vários e sucessivos públicos; com os alegados fundamentos desta aprovação ou reprovação;
com a escolha de temas e interesses;
com a relação entre o conhecimento histórico e os problemas e concepções dominantes da cultura do período em que foi escrito;
com os processos ou argumentos, utilizados para justificar uma interpretação histórica;
com a temporalidade dos discursos de e sobre a literatura, inseridos em quadros de referência de diferentes visões de mundo, nas quais se expressa a complexidade das formas de representação da realidade;
com a escrita da história literária como evento também histórico, cujos enunciados pagam necessariamente tributo ao momento de enunciação;
com o sentido atribuído às formas com que se produz o discurso histórico de e sobre a literatura.
A análise desse discurso poderia inclusive ampliar nossa compreensão sobre a configuração e o papel social dele, relacionando-o: com os programas de vida que comunidades humanas inventaram no passado e com as representações que foram criadas para preencher seu imaginário; ou com as justificativas necessárias para estas invenções, a ponto de, às vezes, pela imposição de crenças coletivas, operadas socialmente, transformá-las de possibilidades em necessidades. Se nos afastamos de uma concepção de História da Literatura como o inventário de uma continuidade cumulativa de textos, podemos também propor o estudo histórico dos conceitos e da terminologia empregados nos discursos de e sobre a literatura.

Podemos investigar:
as comunidades acadêmicas e/ou literárias, organizadas em torno de conceitos compartilhados;
a organização de campos, a partir de conceitos comuns – pesquisando sua duração, seu lugar, sua relação com outros campos;
a mudança de conceitos, terminologias e quadros de referência disciplinares, como indicativo possível de mudanças nos critérios de objetividade (e, portanto, nos objetos);
o âmbito de sentido dos conceitos e terminologias em seu contexto de produção, e a diferença entre a recepção destes, naquele contexto e em outros posteriores;
a relação destas mudanças com o ambiente sociocultural em que se inserem, a partir do qual podem ser vistas como sintoma, efeito, causa, vestígio ou prenúncio de algo;
os termos e conceitos cuja reiterada presença e aparente permanência encobrem diferenças de “conteúdo” no seu emprego em diversos períodos;
a genealogia, circulação, predominância ou posição secundária de quadros conceituais e terminológicos;
o conceito como uma forma única de aglutinar e relacionar determinadas referências vigentes em um momento histórico.
No entanto, mais importante do que as propostas em si é a própria consideração de que, em qualquer destes empreendimentos possíveis, é necessário estar atento às várias dimensões de trabalho teórico envolvidas.


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