Professores André Dias, Marcos Pasche e Ilma Rebello
1) Introdução
O modo dialético (para alguns filósofos, em especial Hegel e Marx, a dialética é uma forma de percepção e concepção da realidade e, por consequência, um método de desenvolvimento do pensar) como desenvolve seu raciocínio leva-o a responder de forma paradoxal: sim e não.
A cultura ocidental, sobretudo após o advento do Iluminismo, passou a compreender o mundo a partir de uma perspectiva racionalista. Quando comparada, por exemplo, com o período das trevas medievais, tal posição se apresenta como um avanço evidente. Entretanto, uma noção distorcida de racionalidade conduz os indivíduos pelo inevitável caminho do reducionismo e da segregação.
Desconsiderar que um mesmo evento pode ser constituído por elementos supostamente contrários ou até mesmo antagônicos, constitui-se como um modelo evidente de deformação do ideário racional. Esse fato tem como consequência imediata a subtração da contradição, elemento tão caro à experiência humana.
Em outras palavras, se suprimirmos a noção de contradição das relações humanas, incorreremos no equívoco de acreditar em ideias perigosamente totalitárias. Sentenças como “onde há civilização não pode haver barbárie”; “a luz da ciência está de um lado e, de outro, a treva da fé”; ou “o conceito de antigo está vinculado ao atraso e o de novo representa o progresso”, são bons exemplos de como afirmações categóricas irrefletidas podem ser excludentes.
De acordo com certa racionalidade, que aqui denominamos de estreita, sua resposta (“sim e não”) significaria uma impropriedade, pois, em tese, ou é possível ou é impossível alguém escapar das redes ideológicas de uma determinada época. Só que, como nos ensina a dialética, inevitavelmente nos deparamos com pessoas, ideias, situações ou coisas em geral que se apresentam como sim e não ao mesmo tempo. Pois, para os seres humanos não há coisa em si: tudo é passível de contextualização e de interpretação.
2) Os Caminhos de um Crítico em Gestação
O lado “não” da proximidade entre vida do autor e interpretação da obra por ele produzida se verifica na hipótese de ver no texto traços que se explicam unicamente por ter o autor vivido certas situações ou possuir determinadas características, o que na prática significa determinismo biográfico.
José Veríssimo não chegou a efetivar uma crítica de estrito teor biográfico. Principalmente na fase inicial de sua carreira, ele pesava sobretudo a força do meio cultural, que incidia sobre a psicologia do autor e arquitetava uma obra em sua totalidade. Mas o biografismo se fez presente, ainda que em doses discretas, no seu exercício crítico. Este fato é facilmente verificável na sua História da literatura brasileira, em cujas páginas cada autor contemplado recebe, antes da análise de sua produção, uma nota a dizer onde e quando nasceu, morreu e o que fez em vida.
Ávido leitor dos teóricos naturalistas e deterministas, Veríssimo colhe suas lições para aplicá-las ao estudo da região de que é proveniente. O estudioso não abandona essa perspectiva nem mesmo quando elabora os textos ficcionais de Cenas da vida amazônica. Intelectual da transição do século XIX para o XX, ele viu de perto, como espectador e participante, os acalorados debates acerca da brasilidade, algo de que sua obra foi nutrida substantivamente. Homem público, editor e educador não se isentou de dar às suas páginas ares de civismo. Sua obra extrapolou as raias nacionais e abordou assuntos e autores de esfera universal.
3) As Vias Opostas de Veríssimo
No Ensaio “José Veríssimo: teoria, crítica e história literária” (1977), o crítico João Alexandre Barbosa divide a carreira do intelectual paraense em três fases:
- a que corresponde à atividade provinciana do autor, de 1878 a 1890;
- a que define a sua participação na vida intelectual do Rio de Janeiro quer como crítico literário, quer como professor e editor, de 1891 a 1900, e, finalmente;
- aquela em que reúne os seus textos em livros e escreve a História da literatura brasileira, publicada no mesmo ano de sua morte, 1916.
No início, a perspectiva de Veríssimo está intimamente ligada ao ideário cientificista que, no Brasil, começou a ganhar corpo na década de 1870. Suas primeiras páginas são fortemente impregnadas de naturalismo, de evolucionismo, de determinismo e de tudo o mais que fosse oferecido no grande cardápio das ciências biológicas e sociais oitocentistas. Em um texto de 1877, intitulado “A literatura brasileira: sua formação e destino”, o autor emite opinião a respeito da formação étnica brasileira. Vejamos: “Um terceiro elemento étnico veio, passados tempos, trazer-nos um fatal contingente. Falamos do elemento africano. Foi o pior dos que tivemos.”
A segunda fase de José Veríssimo é, no entender de Barbosa, caracterizada pela gradativa correção de seu pensamento anterior – “Fui profundamente injusto com a raça negra, na qual tenho antepassados” – ao mesmo passo em que seu pensamento cedia cada vez maior margem para as constituições particulares da literatura. Em “Estudos de literatura brasileira” (1901) –, ele distingue o estilo realista do realismo como função literária: “Eu não creio que o Realismo seja propriamente uma escola; o Realismo é a mesma Arte, pois que a arte não é senão a tentativa de representação do real. Os processos dessa representação como os intuitos que inspiram podem variar, mas esse é o fim da arte.”
A terceira fase aludida por João Alexandre Barbosa é a que serve de preparação para a obra magna de Veríssimo, a História da literatura brasileira. Nessa fase, ocorre uma singular confluência das duas tendências anteriores, sem a febre cientificista do início, é certo, mas sem o exclusivismo teórico da literatura, é certo também. Além disso, este período foi o mais fértil da carreira do autor, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Porém, a guinada radical do crítico que se liberava gradualmente das amarras deterministas jamais aconteceu. Em sua obra permanecia ainda a sede de explicar o Brasil por meio da literatura, o que em geral é reducionista para um e para o outro.
Na prática, isto significa dizer que a crítica de José Veríssimo se mantinha pautada pela análise segmentada. Ou seja, ao abordar determinada obra, o autor não raro apontava primeiramente a biografia, em seguida emitia referências gerais de contexto social e, só depois, efetuava a análise da obra.
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