Professor José Luís Jobim
1) A Literatura e a Língua Natural
O elemento básico que constitui o conjunto de textos a que chamamos de literatura é uma língua natural. Assim, a literatura utiliza a linguagem verbal (de verbo, termo que em português erudito significa palavra) e, por isso, se diferencia de outras artes, como a pintura, a escultura, a arquitetura, que são constituídas por linguagens não verbais.
Se um escritor brasileiro empregar uma frase que não esteja de acordo com as regras da estrutura linguística da língua portuguesa, não será entendido por um público falante do português.
Também é necessário ter em mente que a língua natural não é apenas um elemento neutro, moldado conforme a vontade do autor. No caso da língua portuguesa no Brasil, por exemplo, Bethania Mariani já observou que esta língua, ao atravessar o Atlântico e entrar nas terras da colônia, sofreu modificações, passando a ser uma língua cuja memória já não é mais apenas aquela relacionada à história de Portugal. O contato com outras línguas (indígenas e africanas, por exemplo) e o fato de ser falada por sujeitos nascidos na colônia e não em Portugal impregnam a língua usada no Brasil com uma outra identidade, não mais apenas portuguesa, mas não há como silenciar totalmente a memória portuguesa, gerando esse efeito contraditório: fala-se a mesma língua e ao mesmo tempo fala-se outra língua.
No nosso cotidiano, em algumas ocasiões, já presenciamos a criação de novas possibilidades de uso da palavra por outros falantes do português ou por nós mesmos, mas nos textos literários podemos observar o efeito desta criação como projeto sistemático, mostrando uma possibilidade “nova” e expressiva de construção dentro dos limites das regras gramaticais.
Na literatura, a língua natural não é simplesmente usada para comunicar algo a alguém, mas para construir a obra literária.
Vejamos o esquema abaixo para que possamos visualizar melhor a questão:
a) EMISSOR (qualquer cidadão) > LÍNGUA > MENSAGEM COTIDIANA (“Maria foi à feira.”) > RECEPTOR (ouvinte)
No esquema (a), o emprego da língua pode esgotar-se no próprio uso, ficar limitado ao momento e à situação oral específica em que se proferiu aquela sentença.
b) EMISSOR (autor) > LÍNGUA > OBRA LITERÁRIA > RECEPTOR (leitor)
No esquema (b), o emprego da língua não se esgota no uso momentâneo e eventual, porque permanece na obra. O texto escrito pode significar o distanciamento entre o momento em que se produz a mensagem e o momento em que é recebida. Com o texto escrito, não é necessária a presença concreta do emissor e do receptor, como no diálogo presencial, a que nos acostumamos cotidianamente. Em outras palavras: o texto pode chegar a leitores mesmo depois da morte do autor e de seu primeiro público, ou em lugares muito longe daquele em que originalmente foi escrito.
Paul Ricoeur enfatiza que, para além de ser um caso de comunicação entre pessoas, o texto seria o paradigma do distanciamento na comunicação, e revelaria um caráter fundamental da experiência humana: o de que ela é uma comunicação na e pela distância, tanto temporal como espacial.
Outra tentativa de caracterização da linguagem na literatura é a proposta de Roman Jakobson de que, na literatura, prevalece a função poética da linguagem.
Como sabemos, o linguista russo Roman Jakobson dizia que as funções da linguagem eram seis: emotiva, conativa, referencial, poética, fática, metalinguística. Para ele, no uso cotidiano da linguagem, é comum haver mais de uma função nas mensagens linguísticas, mas sempre haveria uma função predominante. Imaginando o uso da linguagem como comunicação através de mensagens linguísticas em que um “emissor” envia algo a um “destinatário”, Jakobson criou o seguinte esquema:
CONTEXTO
(função referencial)
MENSAGEM
(função poética)
REMETENTE____________________________DESTINATÁRIO
(função emotiva) (função conativa)
CONTATO
(função fática)
CÓDIGO
(função metalinguística)
A função emotiva ou expressiva ressaltaria o estado de espírito do emissor (a interjeição seria um exemplo); a função conativa ressaltaria o direcionamento para o destinatário (o vocativo ou o imperativo seriam exemplos); a função fática seria orientada para o contato, para estabelecer, prolongar, confirmar, interromper a comunicação (um exemplo seria aquele “Alô”, quando você atende o telefone); a função referencial, orientada para designar objetos e atribuir-lhes sentidos (quando dizemos, por exemplo: “Vênus é a estrela da manhã”); a função metalinguística, que se dirige à estrutura linguística usada na mensagem do emissor para o receptor (por exemplo, quando você explica a uma criança: “A palavra vovó em português quer dizer a mãe do seu pai ou da sua mãe”).
A função poética significaria uma orientação do meio linguístico para a mensagem em todos os seus aspectos. Elmar Holenstein, que foi assistente de Roman Jakobson, assim define a posição daquele linguista russo:
Para Jakobson, a poesia constitui o campo onde descobriu e estudou os mais importantes princípios da linguística estrutural: a autonomia da linguagem, o caráter estrutural acentuado da linguagem (a interdependência do todo e das partes), o papel da percepção ou da orientação, a interdependência de som e sentido das estruturas prosódicas (métrica) e gramatical, os dois eixos da linguagem, a multiplicidade das funções linguísticas etc. A função poética ou estética não é isolada e não existe exclusivamente em poesia: ela é apenas o fator predominante e determinante da sua estrutura. As outras funções não estão necessariamente ausentes nos textos poéticos. Neles, desempenham apenas um papel subordinado (nos slogans políticos e publicitários, nos discursos comemorativos, na linguagem infantil etc.) (HOLENSTEIN, 1978, p. 168).
3) Literatura, Linguagem e Contexto
Se, no meu contexto de uso cotidiano da linguagem, digo à minha mulher “Ivan jantou ontem à noite”, há uma série de elementos do contexto que se correlacionam com esta frase: 1) tenho um filho, que mora comigo; 2) este filho praticou a ação de jantar, ontem à noite; 3) minha mulher sabe que este filho se chama Ivan e entende que atribuo a ele a ação de jantar; etc. A frase poderá ser considerada “verdadeira” se aquilo que nela se diz correlacionar-se com o que ocorreu no mundo biossocial em relação ao qual ela foi proferida; se, de fato, uma pessoa chamada Ivan praticou aquela determinada ação naquele tempo.
No entanto, se o contexto desta mesma fala for uma obra literária, na qual um personagem fictício enuncia esta frase, não haverá, necessariamente, a cobrança de que haja uma pessoa ou uma ação “real” à qual a frase se refira. Assim, trata-se da mesma frase, só que o contexto em que ela se enuncia é diferente, o que significa que terá efeitos diferentes.
Ou seja, de alguma maneira a linguagem no romance é descontextualizada de seu contexto no mundo biossocial, não porque as palavras deixem necessariamente de ter o sentido que têm neste mundo, mas porque entram em um contexto ficcional, no qual o critério de “verdade” estabelecido pelo senso comum não vale do mesmo modo.
Não há uma reprodução idêntica, uma reduplicação do mundo real pelo mundo ficcional, nem um critério de validação do ficcional que exija uma referência necessária ao real, ou uma correspondência a ele.
O termo referência tem, pelo menos, duas direções de sentido: pode designar uma relação factual vigente entre uma expressão verbal e alguma outra porção do real; ou uma relação vigente entre uma expressão verbal e um objeto que não existe.
Quando se fala das obras literárias como referência ao real, produzem-se classificações que as dividem em obras que representam mais decididamente o real (como aquelas pertencentes ao período literário chamado Realismo, no século XIX) ou obras que se afastam da representação do real (como aquelas do Surrealismo mais claramente relacionadas à chamada escrita automática). Neste caso, de alguma forma, o critério para classificar estas obras é o mesmo: uma suposta referência (“existente” ou “inexistente”) ao real.
Nenhum comentário:
Postar um comentário