Professores André Dias, Marcos Pasche e Ilma Rebello
1) Introdução
O modelo de crítica literária predominante atualmente trabalha com uma perspectiva da literatura que se poderia chamar de autônoma, o que significa estudar a literatura a partir de suas particularidades específicas, de forma e de sentido, sem ser necessário buscar escora em outras disciplinas para pensá-la e compreendê-la.
Os críticos filiados a tal corrente costumam rechaçar qualquer aproximação da História e da Sociologia, principalmente, visto que elas tiveram grande apelo entre os estudos literários mais representativos até certa altura do século XX.
Assim, um poema, um conto ou um romance interessam na medida em que apresentam uma linguagem a operar um constante deslocamento, seja de significados, seja de estrutura sintática, seja dos dois. O que realmente importa é, no espaço do estudo literário, tornar a literatura um fenômeno autônomo, reconhecê-la como dotada de verdades exclusivas, sendo o princípio e o fim de si mesma.
A função do crítico é notar onde e como ocorre a literariedade (Qualidade de literário; conjunto de características (linguísticas, simbólicas, filosóficas, sociológicas) que permite considerar um texto qualquer como literário.), isto é, a emissão de um discurso, único e diverso, que só pode ser proveniente de um texto literário.
2) A Concepção Crítica de Sílvio Romero
Ele tinha a acertada intenção de fazer da crítica um instrumento de conhecimento não só da literatura e, mais especificamente, da literatura brasileira. Seu intento era contribuir para a percepção alargada do país e de tudo o que o constituía.
3) Equívocos da postura de Sílvio Romero:
- considerar desimportante tudo o que tratasse exclusivamente da essência literária, como se o que não tivesse reverberação sociológica e histórica fosse mau exemplo de “arte pela arte”. “A divisão proposta [da História da literatura brasileira] não se guia exclusivamente pelos fatos literários, porque para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: política, economia, arte, criações populares, ciências... e não, como era de costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia!...”
- muito generalizador, falando de diversos assuntos e muito pouco de literatura
4) Diretrizes básicas da análise crítica de Sílvio Romero:
- Uma Interdisciplinaridade singular, mesclando correntes muito próximas, visto que todas elas pautavam-se pela determinação lógica da constituição e do movimento existencial dos fenômenos que estudaram: o Positivismo (Auguste Comte e Herbert Spencer - a extrema ordenação social levaria uma determinada comunidade ao progresso), o Evolucionismo (Charles Darwin - a permanência de um ser ou de uma espécie na natureza depende de sua capacidade de resistir e adaptar-se a transformações), o Socialismo Científico (Karl Marx - assevera que a fome do capitalismo irá conduzi-lo “naturalmente” à sua própria destruição, e que a transformação mundial advirá dos trabalhadores explorados) e, fundamentalmente, o Determinismo (Hippolyte Taine - toma fatores diversos da natureza e/ou da sociedade para explicar o caráter humano), além do Naturalismo, que é uma fusão de Evolucionismo e Determinismo, buscando em fatores externos ao homem os condicionantes de sua natureza interna. Tal fusão resultou num método de análise rico, no sentido da diversidade de perspectivas, mas absolutamente pobre, no sentido do alcance interpretativo da história e da literatura.
- Meio, história e raça. Essa tríade, abraçando as variantes natureza, sociedade e cultura popular, determina, para Sílvio Romero, o tipo de literatura produzido em determinado país:
No entender, de Sílvio, era a interferência do meio natural sobre a literatura do Brasil: “É a descrição mais ou menos exata do Brasil. Temos uma população mórbida, de vida curta, achacada e pesarosa em sua maior parte. E que relação tem isto com a literatura brasileira? Toda. É o que explica a precocidade de nossos talentos, sua extenuação pronta, a facilidade que temos em aprender e a superficialidade de nossas faculdades inventivas (...). É a razão de toda essa galeria pátria, merencória e sombria de tísicos e histéricos, mortos antes dos trinta anos, onde estão Azevedo, Casimiro de Abreu, Varela, Castro Alves, Junqueira Freire, Macedo Júnior, Dutra e Melo, Franco de Sá (...).”
A interferência da história: O povo inglês naquele tempo [colonial] tinha sede de liberdade, as lutas religiosas estavam em seu dia. O povo português dormitava na beatice; a Inquisição tinha a sua noite. O americano nasceu livre, o brasileiro só o será mais tarde. Não deixam de ser poderosos agentes de estacionamento o falso nacionalismo literário, a imitação estrangeira e a idolatria dos pátrios gênios. A história dá a razão de tudo.
A interferência do componente racial: A ação fisiológica dos sangues negro e tupi no genuíno brasileiro explica-lhe a força da imaginação e o ardor do sentimento(...). Nos contos e lendas é direta a ação das três raças [branca, índia e negra] e a influência do mestiço ainda muito insignificante, a não ser como agente transformador.
5) A História Determinista da Literatura Brasileira
A publicação original da História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, data de 1888. A obra foi e tem sido publicada em dois volumes, mas ela se constitui por quatro livros:
- ao primeiro deu-se o nome de “Fatores da literatura brasileira”, com o qual o autor apresenta sua metodologia crítica;
- o segundo, intitulado “Primeira época ou período de formação (1500-1750)”, já aborda o movimento histórico das letras nacionais, no período colonial; chama-se “Segunda época ou período de desenvolvimento autônomo (1750-1830)”;
- o terceiro livro, centrado numa época cara ao autor, dado que se abandonava a colonização e produzia-se a literatura que, para ele, era a mais rica do Brasil: a da Escola Mineira; “Terceira época ou período de desenvolvimento autônomo (1830-1870)”;
- a quarta e última sessão, manchada, no entender de Sílvio, pelo indianismo romântico, apesar de reconhecer nela algum valor.
Quanto à divisão dos períodos, nenhuma proposta de Sílvio foi aproveitada pelos historiadores subsequentes. Aliás, há tempo considerável só se retorna a Sílvio Romero para ilustrar equívocos de abordagem literária, o que se vê principalmente pela eleição, feita pelo crítico, de autores importantes e dos escritores insignificantes.
Quanto aos autores e escolas, ele tem suas preferências e as declara sem o menor constrangimento. O dado problemático nele, no entanto, são os aspectos empregados para justificar os julgamentos que faz:
- ignora voluntariamente Pero Vaz de Caminha, pois para ele só os autores nascidos no Brasil ou os que nele viveram a maior parte do tempo deveriam figurar em nossa história;
- inicia com Fernão Cardim, e suas anotações de viagem feitas quase ao fim do século XVI;
- destaca com louvor a atuação do padre José de Anchieta;
- Padre Antônio Viera “é um português que viveu no Brasil, simboliza o gênio português com toda a sua arrogância na ação e vacuidade nas ideias, com todos os seus pesadelos jurísticos e teológicos”;
- Gregório de Matos “é um brasileiro que residiu em Portugal, é a mais perfeita encarnação do espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu desprendimento de fórmulas, seu desapego aos grandes, seu riso irônico”;
- Escola Mineira (o Arcadismo) é “talvez o período mais brilhante e original de nossa poesia”, e, embora não o diga diretamente, a opinião se baseia no encontro da riqueza proveniente da mineração, do clima ameno das cidades “históricas” (uso aspas porque toda cidade é histórica) de Minas e de uma poesia escrita por homens brancos a retratarem exemplarmente a natureza e a esboçarem nosso nativismo literário;
- Silva Alvarenga – “é assim um dos iniciadores inconscientes do romantismo brasileiro, não tanto por esse lado da poesia íntima, como pela cor natural de seus quadros”;
- Tomás Antônio Gonzaga – “Vê-se que o lirista quase romântico, o amoroso sonhador conhecia o seu meio; a natureza e a sociedade não lhe eram estranhas. A poesia citada [“Lira XXVI” de Marília de Dirceu] é puramente brasileira”;
- A abordagem do Romantismo é a que mais chama a atenção, pois são as mais impregnadas de cientificismo , sendo a ele dedicado todo o segundo volume da História. Causam grande surpresa a exclusão da prosa ficcional e a divisão do estilo em seis fases, que, a rigor, são seis grupos temáticos ou mesmo geográficos: emanuelismo (religiosidade), indianismo, subjetivismo, sertanejismo, lirismo específico e condoreirismo;
- “Em [Álvares de] Azevedo melhor do que em nenhum outro distingo eu os dois sintomas: 1º é ele um produto local, indígena, filho de meio intelectual, de uma academia brasileira; 2º arranca-nos de uma vez da influência exclusiva portuguesa”;
- De seu amigo e mestre Tobias Barreto ao patamar mais importante poeta brasileiro. Prova disso é que dedica ao abolicionista mais de cem páginas, verdadeira veneração pelo homem que exprimia exatamente o espírito da época: “A eloquência de Tobias Barreto foi uma das mais belas coisas que pude apreciar na vida”;
Em sua historiografia sobram acessórios e falta justamente o principal, que é a análise literária (é pena que na História não esteja presente o estudo que faz sobre Machado de Assis, tachado por ele de enfadonho repetidor). Daí se explica a total abominação da crítica atual por esta figura controversa, que iniciou a modernização da crítica literária brasileira pela via do retrocesso.
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