terça-feira, 29 de março de 2016

Linguística II - Resumo da Aula 3: A hipótese inatista sobre a faculdade da linguagem humana – parte I

Professores Eduardo Kenedy e Ricardo Lima


  1. INTRODUÇÃO

O uso normal da linguagem humana não apresenta quase nenhuma semelhança do que se passa com os animais. Crianças muito pequenas, já aos três ou quatro anos, são capazes de muito mais do que a memorização de algumas dezenas de palavras.
A aquisição da linguagem é um fenômeno compulsório entre os humanos. As crianças não podem escolher não adquirir a língua do ambiente. A aquisição de é muito mais algo que acontece com a criança do que algo que a criança faz.
Somente situações específicas extraordinariamente anômalas, como deficiências cognitivas graves ou isolamento social severo, podem impedir o nascimento da linguagem na mente de uma criança.
A principal característica das línguas humanas, seja nas crianças ou nos adultos, é a CRIATIVIDADE, isto é, a capacidade de criar e compreender novas frases e discursos, diferentes daqueles que já produzimos ou já ouvimos. A CRIATIVIDADE é a principal propriedade das línguas naturais. Tenha atenção porque, ao contrário do que o nome sugere, “ser criativo” para a linguística não quer dizer “ser inventivo”, “ser genial” ou “ser artístico”. A criatividade é um termo técnico que se refere à nossa capacidade normal de produzir e compreender um número ilimitado de frases e discursos. Cada frase e cada discurso que proferimos ou ouvimos em nosso dia a dia é sempre uma criação inédita e única.
Você deve estar se perguntando por que isso acontece. Por que os humanos são capazes de adquirir e usar uma língua tão natural e rapidamente, mas os animais não conseguem, mesmo que sejam submetidos a longos e rigorosos treinamentos?
A resposta que a linguística gerativa apresenta para essa pergunta é a seguinte: um indivíduo humano parece possuir alguma predisposição genética para adquirir e usar a língua de seu ambiente. Isto é, essa capacidade de adquirir e usar uma língua de maneira tão rápida e natural, seja qual for a língua (português, alemão, inglês, xavante, sueco, guarani...) e mesmo que haja mais de uma língua no ambiente (como é caso das comunidades bilíngues ou multilíngues), parece ser fruto de uma disposição biológica exclusiva da espécie humana.

  1. Competência Linguística versus Desempenho Linguístico

A competência linguística humana é a nossa língua-I, ou seja, é a nossa capacidade de produzir e compreender expressões linguísticas compostas pelos códigos da língua-E de nosso ambiente.
Nossa competência linguística permanece em estado de repouso em nossa cognição quando estamos dormindo ou quando estamos pensando silenciosamente em coisas que não recrutam a linguagem. Ela só se torna ativa quando nos engajamos numa conversa, seja como falantes ou como ouvintes, ou quando escrevemos ou lemos um texto.
Uma coisa é a nossa competência linguística e outra coisa é o uso concreto que, numa situação de comunicação real, fazemos dessa competência, que é denominado desempenho linguístico, ou performance linguística, pois muitos aspectos do uso da linguagem parecem ser completamente exteriores ao nosso conhecimento linguístico, como por exemplo, o aparelho fonador humano, que fazem parte de outro domínio do corpo humano e não é neles que a essência de nossa linguagem se encontra. Prova disso é que a capacidade linguística humana pode realizar-se por outros meios, inteiramente independentes do aparelho fonador, como acontece nas línguas de sinais usadas pelas pessoas surdas.
O casal Gardner resolveu treinar a chimpanzé Washoe com palavras da LSA. Washoe aprendeu a realizar fantásticas proezas comunicativas com a LSA, mas tal desempenho em muito pouco se assemelha ao uso naturalmente criativo – no sentido técnico que já conhecemos para o termo criatividade – que crianças surdas em fase de aquisição da língua de sinais de seu ambiente (a sua língua-E) conseguem fazer. Diferentemente do que o casal Gardner imaginou, a incapacidade de Washoe ou de qualquer macaco em usar plenamente uma língua humana, oral ou gestual, não é um problema de performance, mas, sim, um problema de competência linguística.
Alex, o papagaio africano, é um caso complementar ao de Washoe. Em razão da estrutura anatômica do sistema respiratório e deglutivo, um aparelho fonador mais ou menos adequado para imitar a fala humana, dos papagaios de sua espécie, Alex conseguia produzir muitos sons idênticos aos do inglês, língua usada oralmente durante o seu treinamento. Porém, somente deter esse mecanismo de desempenho não tornou o animal apto a usar uma língua humana de maneira normal (criativa), pois a ele faltava o essencial: a competência linguística. Eles (os papagaios) são capazes de repetir um número relativamente grande de expressões que lhes foram ensinadas, mas não são capazes de produzir ou compreender uma única conversa simples, que qualquer criança de três anos trava diariamente com outras crianças ou com adultos, muito embora tenham um aparelho fonador que lhes permite uma performance vocálica parecida com a humana.
Dizemos que a competência linguística é o módulo (módulo cognitivo exclusivo da linguagem) da mente humana em que todos os conhecimentos sobre a fonologia, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semântica e a pragmática de uma língua estão armazenados.
O desempenho linguístico, isto é, o uso da linguagem, envolve a conjugação do conhecimento linguístico junto a inúmeros outros tipos de conhecimento (muitos outros módulos da cognição humana). Se a competência linguística é modular, o desempenho é necessariamente não modular, ou intermodular.

A competência modular e o desempenho intermodular

Devemos entender que a competência diz respeito apenas ao conhecimento linguístico – algo estático e isolado na anatomia modular que atribuímos à mente humana na linguística gerativa –, ao passo que o desempenho é o uso dinâmico desse conhecimento de maneira integrada a muitos outros tipos de cognição não especificamente linguística.

A competência linguística envolve muitas habilidades: o controle motor dos músculos do aparelho fonador durante a produção da fala, a nossa memória, necessária para recuperamos na mente as informações sobre as quais queremos falar; a nossa concentração, necessária para focarmos no assunto de que falamos; as nossas emoções, necessárias para nos colocarmos numa certa perspectiva em relação à pessoa com que falamos ou em relação ao assunto de que falamos; as nossas interações sociais, necessárias tanto para sabermos o que devemos e podemos falar em certos contextos, quanto para sabermos o que não devemos ou não podemos falar em noutras situações, necessárias também para sabermos inconscientemente os tipos de conhecimentos que compartilhamos com as outras pessoas presentes no ato da fala.
Para o gerativismo, linguagem e uso são interpretados como grandezas muito diferentes. Os gerativistas afirmam que existem assimetrias entre o que sabemos sobre uma língua e o que fazemos com a linguagem. Isto é, o gerativismo assume que o nosso saber linguístico não é a mesma coisa que o nosso fazer linguístico. Uma clara ilustração das assimetrias entre saber e fazer são os casos dos deslizes da linguagem.
Um deslize da linguagem, chamado em inglês de slips of the tongue, acontece quando uma forma concretamente realizada durante o desempenho linguístico é diferente da maneira como essa mesma forma deve estar representada no conhecimento linguístico.
Quando as palavras fazem parte da competência linguística, mas, por alguma razão, na hora de articulá-las, isto é, no momento do desempenho linguístico, um erro no processamento dos fonemas, aconteceu um deslize da linguagem.
Por exemplo: “Gente, está na hora de bortar o colo” (“cortar o bolo”)

Ou quando se pretende utilizar uma forma linguística, mas, no momento do desempenho, há uma falha no processamento da posição linear dos sintagmas e duas palavras trocam de lugar, ocorre um deslize de linguagem.

Por exemplo: “Ah, seu burro! Pulmão não tem peixe.” (“Peixe não tem pulmão”)

Linguagem e uso

Foi em seu livro de 1965, intitulado Aspectos da teoria da sintaxe, que Chomsky propôs claramente a separação entre competência e desempenho linguísticos. É possível dizer que, para a maioria dos gerativistas, a dicotomia chomskiana captura ainda hoje um importante fato a respeito da linguagem humana: “língua é língua” e “uso é uso”, ou seja, sabemos coisas sobre a linguagem e fazemos coisas com a linguagem. No gerativismo, as duas realidades não se confundem. Não obstante, muitos linguistas e cientistas da cognição não concordam com essa divisão teórica entre saber e fazer. Numerosos psicolinguísticas, funcionalistas e sóciocognitivistas, dentre outros estudiosos contemporâneos, afirmam que a dicotomia de Chomsky não tem razão de ser. Para Adele Goldberg (da Universidade de Princeton, EUA), por exemplo, no conjunto dos sistemas cognitivos humanos, “língua é uso” e “uso é língua”, isto é, nossa linguagem só existe pelo uso que dela fazemos e tal uso é a própria linguagem. É possível que as discussões contemporâneas sobre a oposição linguagem X uso levem a uma rediscussão da dicotomia chomskiana, seja para a sua confirmação ou para a sua superação.

Usamos o termo deslize porque se trata de fenômenos que acontecem esporadicamente durante o desempenho linguístico de uma pessoa. No caso, a REPRESENTAÇÃO linguística pretendida pela pessoa era uma, mas, no momento de sua realização concreta, ocorreu um problema de ACESSO a tal representação e a forma final produzida não correspondia à forma inicial pretendida. O fato de que os deslizes são um equívoco no desempenho linguístico e não um problema na competência dos falantes torna-se claro quando as próprias pessoas que cometem os deslizes reconhecem a assimetria entre representação e acesso e imediatamente se corrigem.
Na estrutura modular da cognição humana, as emoções não podem sercaracterizadas como componentes do módulo da linguagem e, assim, não desempenham papel na estrutura do conhecimento linguístico, o nosso saber. Não obstante, emoções são um dos inúmeros fatores que influenciam o comportamento humano e, assim, muito contribuem para a natureza da performance linguística, o nosso fazer.
O gerativista é um estudioso da competência linguística. Seu objetivo é formular uma teoria que descreva e explique o que é o conhecimento de uma língua. O uso do conhecimento linguístico de maneira integrada aos outros domínios da cognição é objeto de estudo da psicolinguística.


  1. O Problema de Platão

Platão, filósofo grego, demonstrou, em diversos momentos de sua obra, sua perplexidade diante da capacidade humana de acumular conhecimentos e habilidades, apesar da existência breve e tumultuada comum a cada membro de nossa espécie. Bertrand Russel, filósofo inglês do século XX, traduziu com grande clareza a inquietação platônica:











Transpondo para o nosso campo de estudo, a Linguística: como é possível que uma criança humana, após alguns poucos anos de contato com a língua de seu ambiente, sem passar por treinamento intensivo explícito e sem ao menos possuir um sistema neurológico completo, seja capaz de adquirir o conhecimento linguístico? Por que, aparentemente, apenas os humanos conseguem adquirir uma competência linguística? Por que os outros animais não conseguem?
Praticamente todos os conhecimentos que os seres humanos adquirem dependem de informações advindas de seu ambiente biossocial. A transmissão cultural humana não é um milagre que simplesmente acontece de geração para geração (conforme afirmaram os Sofistas). O problema de Platão nos indaga, justamente, sobre como é possível aprendermos a cultura de nosso ambiente. A aquisição da linguagem ou de qualquer tipo de conhecimento socialmente compartilhado só é possível para um organismo que seja capaz de aprender.
Animais, por exemplo, são organismos capazes de aprender diversos tipos de conhecimento, mas não o conhecimento linguístico, dentre muitos outros que lhes são inacessíveis. Por sua vez, humanos são organismos capazes de adquirir competência linguística e muitos outros tipos de conhecimento, mas logicamente há no universo muito mais do que aquilo que de fato chegamos a conhecer.
Existem várias respostas logicamente possíveis para o problema de Platão. Eis uma: as crianças aprendem a linguagem através da imitação da fala das outras pessoas. Chomsky indicou que o mero contato com os estímulos linguísticos nas interações socioculturais, seja pela pura imitação ou pela instrução explícita, não pode explicar como chegamos a desenvolver um conhecimento linguístico tão específico sobre a fonologia, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semântica e pragmática de uma língua natural.


  1. O Argumento da Pobreza do Estímulo

Na essência dos argumentos sofistas contra o problema de Platão estava a pressuposição de que o ser humano não possui nenhuma dotação natural para desenvolver uma cognição. De acordo com esse pensamento, os humanos seriam ao nascer como uma folha de papel em branco ou uma tabula rasa, isto é, seriam um organismo sem qualquer pré-programação para certos tipos de cognição ou de comportamento. O corolário dessa ideia é a hipótese de que a aquisição do conhecimento humano decorre exclusivamente dos estímulos a que somos expostos. Seria tão somente a experiência na interação com o mundo biossocial que inscreveria impressões sobre a folha em branco e preencheria a tabula rasa.

Chomsky formulou duas fortes objeções à hipótese da tabula rasa:

  • o primeiro argumento ficou conhecido como o problema lógico da aquisição da linguagem: os estímulos que uma criança recebe durante os anos de aquisição da linguagem são finitos, por mais ricos e diversificados que possam ser. As crianças recebem estímulos de seu ambiente durante dois, três ou quatros anos, período finito ao fi nal do qual o conhecimento linguístico parece ter sido atingido plenamente. Porém, ao fi m do processo de aquisição da linguagem, a competência linguística que a criança adquiriu não é um sistema que gere apenas produtos fi nitos. As frases e os discursos que as crianças podem produzir e compreender após a aquisição da linguagem são ilimitadas, potencialmente infinitas, e não apenas a reprodução dos padrões detectados nos dados fi nitos apresentados no estímulo. A criança não se limita a reproduzir os estímulos que recebeu, antes, ela age criativamente, produzindo e compreendendo enunciados inéditos. O problema lógico está aí: como é possível que um número finito de estímulos dê origem a um sistema que gere produtos infinitos?
    Com esse argumento, Chomsky sustenta que não é logicamente possível criar outputs infinitos a partir de inputs finitos, ou seja, é impossível criar uma competência linguística com base apenas nos estímulos linguísticos. Para ele, as crianças deveriam completar os dados da experiência com algum filtro (organismo) que transformasse o input finito num output infinito.







  • o segundo ficou conhecido como o argumento da pobreza de estímulos. O argumento da pobreza de estímulo sustenta, na verdade, que o conhecimento preciso e elaborado que a criança constrói sobre a estrutura da sua língua não pode ser deduzido unicamente a partir das informações contidas nos estímulos linguísticos, por mais ricas que sejam. Os estímulos, segundo Chomsky, são pobres porque não possuem todas as informações necessárias para a aquisição do conhecimento linguístico. De acordo com Chomsky, a criança deve deduzir por si própria uma grande quantidade de informações, sem as quais os estímulos para pouco serviriam. Um dos belos fatos sobre as línguas naturais é que elas permitem com que falemos o que quisermos, ao mesmo tempo em que nos impelem a fazê-lo de uma determinada maneira. Trata-se, portanto, de uma propriedade estrutural da língua, a qual deve ser adquirida pela criança. O argumento da pobreza de estímulo sustenta, precisamente, que uma regra complexa como a ligação de anáforas e de reflexivos tem de ser deduzida pela criança. Tal regra não pulula espontaneamente dos estímulos. Os estímulos são pobres, isto é, não possuem todas as informações necessárias para o aprendizado. A criança precisa estar equipada com uma “máquina de aprender sintaxe” muito potente para poder aprender a lógica por detrás das anáforas presentes nos estímulos.
    Além do conhecimento sobre a estrutura de frases, nossa competência linguística armazena também informações sobre o uso contextualizado da língua em situações de interação sociocomunicativa. Chamamos esse tipo de conhecimento de competência pragmática. Com essa competência, somos capazes de identificar, por exemplo, sobre o que falamos numa dada conversa, qual é o tópico do discurso, qual é o foco da informação, que dados são relevantes ou não num diálogo, que tipo de pormenores podemos desprezar num determinado assunto, e daí por diante. Nesse caso, o argumento da pobreza de estímulos irá questionar: como conseguimos simplificar ao máximo todas as infinitas possibilidades lógicas de inferência num dado momento comunicativo e nos atermos ao que de fato é pragmaticamente relevante?
    O que a criança precisa fazer para tornar-se um usuário normal da língua é intuir corretamente os sentidos das expressões com que se depara em certos momentos comunicativos, de modo a evitar a quantidade enlouquecedora de possibilidades lógicas de inferência? O filósofo Willard Van Quine (1908-2000) denominou esse problema de “o escândalo da indução”. Esse “escândalo” é o seguinte: como é possível as crianças observarem tão bem um conjunto finito de eventos de modo a fazer generalizações corretas a respeito de todo evento futuro daquele mesmo tipo? Como elas conseguem rejeitar de maneira apropriada o número infi nito de generalizações irrelevantes, embora logicamente possíveis, a partir da observação original de um evento? As crianças conseguem descobrir que o mundo funciona de uma determinada maneira, e que é essa a maneira que deve ser levada em consideração ao fazer inferências sobre o uso da linguagem.
    É exatamente essa capacidade de filtrar informações e focar-se no que é relevante que chamamos de competência pragmática. Mais uma vez, os estímulos do ambiente não fornecem todas as pistas explícitas sobre quais inferências são corretas e quais não são. As inferências devem ser processadas pela mente das crianças. Os estímulos são pobres, isto é, não detalham tudo o que é sufi ciente e necessário para a aquisição do conhecimento. Para se tornar um falante normal da língua, a criança deve possuir, portanto, em sua mente uma robusta “máquina de aprender pragmática” que possa atribuir coerência aos estímulos linguísticos e comunicativos.
    A suntuosa complexidade de nosso vasto conhecimento linguístico não é dedutível espontaneamente pelos estímulos do ambiente biossocial. Tais estímulos devem ser ativamente interpretados pela mente humana de modo a serem transformados em conhecimento. Deve haver, deste modo, algo em nossas mentes que consiga extrair informações dos estímulos e dar-lhes consistência. É isso o que propõe Chomsky com a hipótese do inatismo linguístico.

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