terça-feira, 29 de março de 2016

Teoria da Literatura I - Resumo da Aula 4:: Ficção, Realismo e Referência

Professor José Luís Jobim


1) Ficção 

René Descartes proclamava que a sutileza da ficção estimula a mente, mas considerava este um mérito desprezível, porque a ficção nos faria imaginar certos eventos como possíveis, quando na verdade são impossíveis. Ele dizia que mesmo as estórias mais fidedignas – se não alteram ou enfeitam as coisas, para adaptá-las ao gosto do leitor – quase sempre omitem as circunstâncias mais desprezíveis e menos ilustres, de modo que o resultado fica distorcido.

O teórico alemão Wolfgang Iser assinalou que, em Roma, a palavra latina fictio (ficção) era usada no Direito para alguém que cometia um crime, mas, por não ser cidadão romano, não tinha dignidade suficiente para ser processado. Por isto, era necessária a ficção, para sentenciá-lo como se fosse um cidadão romano, embora viesse a ser despojado de sua pretensa cidadania depois de ter sido sentenciado. (ISER, 1996, p. 157-178). 

Se trabalhamos numa chave em que se imagina que tudo que não existe concretamente é “ficção”, então o mundo ficcional é bem amplo. Estas formulações enquadram-se em um contexto mais abrangente de discursos que não aspiram a referir-se ao que “realmente é”, mas ao que “poderia ser”. 

A vivência do poder ser de mundos ficcionais e a apreensão dos interesses, objetivos, projetos e quadros de referência destes mundos pode alargar o nosso horizonte, incluindo nele aspectos da vida humana que nos seriam inacessíveis de outra maneira. 

Para o teórico inglês Frank Kermode, as ficções serviriam, entre outras coisas, para atribuir sentido ao tempo, ou seja, para transformar o tempo visto como mera sucessão de instantes em tempo pleno de significação humana. Como numa epopeia, o homem, ao nascer, entraria in media res, ou seja, no meio de uma estória na qual não seria o único personagem. Além disto, assinala Kermode, também morreria in mediis rebus, e, para achar sentido no lapso de sua vida, precisaria de acordos fictícios com as origens e os fins, que pudessem dar sentido à vida e aos poemas. 

Há quem deprecie a Literatura, argumentando que esta, no máximo, pode provocar um certo prazer no leitor, mas nunca produzir conhecimento. Por outro lado, na opinião do teórico alemão Wolfgang Iser, o leitor, ao confrontar-se com as convenções e normas, no texto literário, pode ter uma visão nova das forças que o guiam e orientam em sua sociedade, e que ele pode até então ter aceito sem questionar. Assim, o distanciamento gerado pelo texto pode servir para que possamos compreender inclusive a perspectiva limitada derivada deste nosso envolvimento nas formas de vida, tradições e paradigmas da cultura em que nos inserimos, sem sequer as percebermos. 

Voltando ao exemplo de Wolfgang Iser, em que, para julgar um escravo em Roma, criava-se uma ficção, se as regras não permitiam que um escravo fosse julgado, porque apenas cidadãos romanos tinham o direito de serem julgados (e o escravo não era um cidadão romano), então a transformação ficcional do escravo em cidadão serve para enquadrar o que não era previsto em um quadro de referências já estabelecido. 



2) Realismo e Referência 

No século XIX, dois movimentos literários compartilhavam a crença de que a literatura deveria imitar, reproduzir ou ser um espelho do real: Realismo e Naturalismo. Também era compartilhada a crença de que a linguagem é apenas algo transparente, através de que seria possível mostrar o real “tal como ele é”. Mas, a ideia de reprodução do real na linguagem não estaria em contradição com a própria diferença material entre o real e a linguagem? E, se a linguagem é o elemento constitutivo da obra literária é a linguagem, como podemos aceitar que a linguagem é apenas algo transparente? 

Esta relação com as formas de saber prestigiosas no XIX (positivismo, darwinismo, fisiologismo etc.) relacionava-se com as pretensões do discurso realista/naturalista de produzir um certo conhecimento sobre o real que supostamente retratavam. Em outras palavras: de algum modo os autores daquela escola supunham estar não somente reproduzindo o real, mas também dando ao leitor um conhecimento sobre ele. 

E de todo modo, no que diz respeito à escrita literária, interessa-nos assinalar aqui que a escola realista/naturalista criou uma certa forma de escrever para apresentar um efeito de realidade. Esta forma de escrever incluía, entre outras coisas, procedimentos descritivos exaustivos que supostamente concretizariam a imitação do real, através de um inventário detalhado de seus elementos componentes. A ambição daquelas escolas supunha estar dando a este leitor também um conhecimento sobre a realidade. Esta suposição entrava em conflito com a própria ficcionalidade dos personagens, mas podia ser resolvida de forma ao menos parcialmente satisfatória com a observação de que os personagens específicos podiam não ser “reais”, mas o tipo humano e social que representavam era, assim como as situações em que se encontravam no mundo ficcional, as quais encontrariam correlatos no mundo real. 

Recordemos as palavras do filósofo: “...não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” Para Aristóteles, o historiador diz as coisas que sucederam e o poeta as que poderiam suceder: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular” (ARISTÓTELES, 1973, p. 439-512).

Não é só na literatura que se fala do possível e do que não ocorreu efetivamente, pois deparamos em nosso cotidiano com uma série de formulações verbais que não se referem a coisas existentes: proposições condicionais, promessas, explicitação de desejos, especulações sobre o futuro. Estas formulações, como dissemos, enquadram-se em um contexto mais abrangente de discursos que não aspiram a referir-se ao que “realmente é”, mas ao que “poderia ser”. E, é claro, fazem parte do real.

Com efeito, há sempre um determinado número de convenções para a construção de mundo. Se presumirmos que o mundo “real” as possui e usarmos este como referência para o mundo “ficcional”, existe uma série de coisas que podem aparecer no ficcional como “derivadas do real”: nomes de personagens, espécies de animais e vegetais, eventos inseridos em certa cronologia, objetos. 

A definição de “ficcional” faz-se com frequência por oposição a um certo “real” (quer se veja este “real” como algo estável, permanente e contínuo, quer seja ele concebido como uma construção, variável conforme o quadro de referências a partir do qual é elaborada). 

O mundo ficcional é criado (e visto) a partir dos limites do chamado mundo real. Um texto é considerado “realista” porque constrói um mundo que é, de alguma forma, visto como análogo a ou derivado do mundo real. este suposto caráter analógico ou derivado que acaba sendo a característica básica atribuída aos textos “realistas”. 

Poderíamos responder que significa que não há uma reprodução idêntica, uma reduplicação deste mundo por aquele, nem um critério de validação do ficcional que exija uma correspondência necessária com o real. Isto não quer dizer, contudo, que não haja referência ao real. 

Esta referência é mais visível em certas espécies literárias como, por exemplo, o chamado romance histórico. Pessoas como George Washington, Napoleão e Getúlio Vargas aparecem como personagens do mundo ficcional e o público leitor estabelece em geral uma relação de identidade (ou não) entre a pessoa e o personagem. Isto significa também que o leitor usará critérios de validação vigentes no mundo real, para julgar o estado de coisas do mundo ficcional. 

Podemos também perceber que as crenças, desejos e ações de um personagem ficcional encontram correspondências, analogias, parentescos, ligações com outras crenças, desejos e ações de pessoas reais, ou de pessoas possíveis no mundo real. No entanto, o personagem pertence ao mundo ficcional, já que não existiu efetivamente esta pessoa singular no mundo real. 

Ao usar o par opositivo verdadeiro e falso, é frequente classificar como falsas as asserções sobre personagens do mundo ficcional. Isto porque o senso comum estabelece que asserções verdadeiras são aquelas que encontram referentes extradiscursivos no mundo real. Contudo, quem trabalha com literatura sabe que se podem fazer afirmações verdadeiras ou falsas referentes ao mundo ficcional. “Riobaldo aposentou-se e foi morar no Rio de Janeiro” seria uma afirmativa falsa em relação ao mundo de Grande sertão: veredas, por exemplo. Além disso, haveria uma série de questões suscitadas pela narrativa ficcional que também mereceriam atenção. 

O uso da primeira pessoa é um dos recursos usados, no quadro de referência de nossa cultura, para diferenciar os discursos “subjetivos” dos “objetivos”, que fazem uso da terceira pessoa. Na literatura, podemos exemplificar com o Realismo, no qual o uso da terceira pessoa pretendia corresponder a um efeito de “retratar a realidade”, efeito que não é fundamentalmente diferente no discurso histórico. 

Talvez pelo fato de o uso da terceira pessoa não designar “especificamente nada nem ninguém”, como disse o linguista Émile Benveniste (“é inclusive a forma verbal que tem por função exprimir a ‘não pessoa’”) (BENVENISTE, 1976, p. 251), o receptor capta a mensagem discursiva como se, estando ausente o emissor, esta mensagem fosse um conteúdo não marcado pela pessoalidade de quem o investiu de forma. Mas esta pessoalidade (esta “subjetividade”, se quiserem) só está ausente no efeito gerado pelo “como se fosse”: aí, a terceira pessoa pode representar “aquele que está ausente”, conforme a visão dos gramáticos árabes (BENVENISTE, 1976, p. 250). Ou, na nossa visão, pode significar aquele que deseja, através do uso deste recurso linguístico, disfarçar a sua presença inevitável como sujeito efetivo do discurso. 


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