quarta-feira, 30 de março de 2016

Português II - Resumo da Aula 4: Tipos de Sujeito

Professores Ivo da Costa do Rosário e Mariangela Rios de Oliveira

Vamos, nesta aula, expor a classificação dos tipos de Sujeito na Língua Portuguesa:

1) Sujeito Simples 

O sujeito simples tem um só núcleo (O núcleo é a palavra que possui maior significação em um termo. Normalmente, o núcleo do sujeito equivale a um nome ou pronome); em outras palavras, apresenta-se como um SN que tem apenas um elemento determinado (ou termo principal), independentemente do número de determinantes (ou termos secundários). 

Por exemplo: 
(6) Os homens desejam a paz. (núcleo: substantivo)
(7) A maioria dos homens deseja(m) a paz. (núcleo – que tanto pode ser maioria quanto homens - razão pela qual o verbo, como referimos anteriormente, pode se flexionando no plural ou não)
(8) João ama Maria. (núcleo: substantivo)
(9) O professor é americano. (núcleo: substantivo)

Sujeitos pronominais: 
(10) Alguém deseja a paz. (núcleo: pronome indefinido)
(11) Ninguém ama Maria. (núcleo: pronome indefinido)
(12) Ele é professor. (núcleo: pronome pessoal)
(13) Ambos são professores. (núcleo: numeral)
(14) O professor daquela cidade distante deseja a paz. (núcleo: substantivo = professor)


2) Sujeito Composto 

Sujeito que tem mais de um núcleo, cujo verbo deve ocorrer no plural.

Por exemplo: 
(15) O professor e o aluno são americanos.
(16) O presidente, os ministros e toda a nação desejam a paz.
(17) Eu e você amamos Maria.


3) Sujeito Oculto, Elíptico ou Desinencial (Determinado) 

Não consta na NGB. Há tendência, portanto, de se incluir o sujeito oculto na classe do sujeito simples, como um subtipo deste.

Chama-se de oculto o sujeito que pode ser identificado na oração, ainda que não esteja formalmente expresso ou marcado por um termo específico. Ao contrário do sujeito indeterminado, o sujeito oculto está subentendido, sendo recuperável por intermédio de duas estratégias:

a) Pela identificação da desinência verbal:
(18) Fizemos uma passeata. (desinência = -mos → “nós”)
(19) Falaste bem do professor. (desinência = -ste → “tu”)

b) Pela presença do sujeito no contexto (oração ou período) anterior: 
(22) Ambos são professores e dão aula de Matemática. 
(21) A maioria dos homens deseja a paz; mesmo assim não consegue deter a violência.
 
Na verdade, a utilização do sujeito oculto é considerada estratégia eficiente e adequada na escrita padrão. Com esse recurso, evitam-se repetições ou retomadas literais de SN, promovendo o “enxugamento” do texto, a concisão da expressão, considerada uma das qualidades básicas da produção escrita mais eficiente. Vejamos, como exemplo, um pequeno trecho, extraído de uma revista semanal: 

(22) Os crachás “high tech” de hoje em dia são uma maravilha: θ abrem portas e θ são o seu RG no trabalho.

O sujeito oculto se manifesta e é pressuposto pelos falantes da língua, que sabem a respeito de quem ou do que se está fazendo alguma declaração.


4) Sujeito Indeterminado 

É indeterminado quando desconhecemos, não temos interesse em saber ou não queremos dizer quem executa a ação, “existe na ideia”, e a língua dispõe de recursos específicos para marcar essa existência não muito clara ou relevante, sendo classificado pelo viés semântico e morfossintático, através de dois recursos de natureza gramatical: 

a) Verbo na 3ª pessoa do plural, sem referência a SN contido na oração:
(23) Fizeram uma passeata pela paz. 
(24) Falaram mal do professor.

b) Verbo na 3ª pessoa do singular, com o pronome “se” (índice de indeterminação do sujeito):
(25) Precisa-se de professores.
(26) Vive-se bem aqui.
(27) Devagar se vai ao longe.

O sujeito indeterminado tem visibilidade e nível de importância menores do que o predicado; este sim é o grande componente oracional.

Obs.: Vendem-se casas ou Aceitam-se encomendas de doces. Nestas últimas orações, não há indeterminação do sujeito, já que casas e encomendas de doces estão nesta função. O que temos aí são orações na chamada voz passiva pronominal, em que o sujeito apresenta-se após o SV, com o qual deve concordar (sujeito plural > verbo plural); trata-se de formações equivalentes a Casas são vendidas ou Encomendas de doces são aceitas. Assim, de acordo com a norma padrão, estariam equivocados usos populares, muito encontrados, como “Vende-se casas” e “Aceita-se encomendas”.

5) Oração sem Sujeito 

De acordo com a tradição gramatical, a oração sem sujeito caracteriza-se pela ênfase no processo verbal. Trata-se de um tipo de oração em que não se atribui a nenhum ser ou entidade a realização desse processo. Portanto, considera-se que o sujeito, nessas construções, é “inexistente” e o verbo se classifica como “impessoal”. 

A oração sem sujeito, dessa forma, não se confunde com o sujeito indeterminado, uma vez que neste caso o sujeito existe, embora não se possa ou não se queira identificá-lo. 

Conforme Cunha e Cintra (2001, p. 126), a oração sem sujeito manifesta-se, basicamente, por três modos de expressão: 

a) Com verbos ou expressões referentes a fenômenos da natureza: 
(28) Chove lá fora! 
(29) Faz frio aqui dentro. 
(30) Anoitecia no meio da selva.

b) Com verbo haver no sentido de “existir”: 
(31) Nessa escola, não havia professor de Matemática. 
(32) Atualmente, há muitas passeatas pela paz. 
(33) Houve noites em que não dormi.

De acordo com Cunha e Cintra (2001, p. 127), o uso do verbo ter como impessoal é corrente “na linguagem coloquial do Brasil”, além de estar consagrado na literatura moderna e em outras manifestações. Citam os autores ainda que tal uso “deve estender-se ao português das nações africanas”, devido ao registro de ocorrências desse tipo em fontes literárias do português de Angola. 

c) Com os verbos haver, fazer e ir indicando tempo decorrido e com o verbo ser na referência a tempo geral: 
(35) Há tempos / não vemos uma passeata pela paz. 
(36) Faz três anos / que ele é professor. 
(37) Vai para dois meses / que não durmo bem. 
(38) Era cedo / quando adormeci. 

Literatura Brasileira I - Resumo da Aula 4: A história e a literatura como produtos da ciência. A historiografia de Sílvio Romero (II)

Professores André Dias, Marcos Pasche e Ilma Rebello

1) Introdução 

O modelo de crítica literária predominante atualmente trabalha com uma perspectiva da literatura que se poderia chamar de autônoma, o que significa estudar a literatura a partir de suas particularidades específicas, de forma e de sentido, sem ser necessário buscar escora em outras disciplinas para pensá-la e compreendê-la. 

Os críticos filiados a tal corrente costumam rechaçar qualquer aproximação da História e da Sociologia, principalmente, visto que elas tiveram grande apelo entre os estudos literários mais representativos até certa altura do século XX. 

Assim, um poema, um conto ou um romance interessam na medida em que apresentam uma linguagem a operar um constante deslocamento, seja de significados, seja de estrutura sintática, seja dos dois. O que realmente importa é, no espaço do estudo literário, tornar a literatura um fenômeno autônomo, reconhecê-la como dotada de verdades exclusivas, sendo o princípio e o fim de si mesma. 

A função do crítico é notar onde e como ocorre a literariedade (Qualidade de literário; conjunto de características (linguísticas, simbólicas, filosóficas, sociológicas) que permite considerar um texto qualquer como literário.), isto é, a emissão de um discurso, único e diverso, que só pode ser proveniente de um texto literário. 


2) A Concepção Crítica de Sílvio Romero 

Ele tinha a acertada intenção de fazer da crítica um instrumento de conhecimento não só da literatura e, mais especificamente, da literatura brasileira. Seu intento era contribuir para a percepção alargada do país e de tudo o que o constituía. 


3) Equívocos da postura de Sílvio Romero: 

  • considerar desimportante tudo o que tratasse exclusivamente da essência literária, como se o que não tivesse reverberação sociológica e histórica fosse mau exemplo de “arte pela arte”. “A divisão proposta [da História da literatura brasileira] não se guia exclusivamente pelos fatos literários, porque para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: política, economia, arte, criações populares, ciências... e não, como era de costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia!...” 
  • muito generalizador, falando de diversos assuntos e muito pouco de literatura 

4) Diretrizes básicas da análise crítica de Sílvio Romero: 

  • Uma Interdisciplinaridade singular, mesclando correntes muito próximas, visto que todas elas pautavam-se pela determinação lógica da constituição e do movimento existencial dos fenômenos que estudaram: o Positivismo (Auguste Comte e Herbert Spencer - a extrema ordenação social levaria uma determinada comunidade ao progresso), o Evolucionismo (Charles Darwin - a permanência de um ser ou de uma espécie na natureza depende de sua capacidade de resistir e adaptar-se a transformações), o Socialismo Científico (Karl Marx - assevera que a fome do capitalismo irá conduzi-lo “naturalmente” à sua própria destruição, e que a transformação mundial advirá dos trabalhadores explorados) e, fundamentalmente, o Determinismo (Hippolyte Taine - toma fatores diversos da natureza e/ou da sociedade para explicar o caráter humano), além do Naturalismo, que é uma fusão de Evolucionismo e Determinismo, buscando em fatores externos ao homem os condicionantes de sua natureza interna. Tal fusão resultou num método de análise rico, no sentido da diversidade de perspectivas, mas absolutamente pobre, no sentido do alcance interpretativo da história e da literatura. 
  • Meio, história e raça. Essa tríade, abraçando as variantes natureza, sociedade e cultura popular, determina, para Sílvio Romero, o tipo de literatura produzido em determinado país: 
No entender, de Sílvio, era a interferência do meio natural sobre a literatura do Brasil: “É a descrição mais ou menos exata do Brasil. Temos uma população mórbida, de vida curta, achacada e pesarosa em sua maior parte. E que relação tem isto com a literatura brasileira? Toda. É o que explica a precocidade de nossos talentos, sua extenuação pronta, a facilidade que temos em aprender e a superficialidade de nossas faculdades inventivas (...). É a razão de toda essa galeria pátria, merencória e sombria de tísicos e histéricos, mortos antes dos trinta anos, onde estão Azevedo, Casimiro de Abreu, Varela, Castro Alves, Junqueira Freire, Macedo Júnior, Dutra e Melo, Franco de Sá (...).” 

A interferência da história: O povo inglês naquele tempo [colonial] tinha sede de liberdade, as lutas religiosas estavam em seu dia. O povo português dormitava na beatice; a Inquisição tinha a sua noite. O americano nasceu livre, o brasileiro só o será mais tarde. Não deixam de ser poderosos agentes de estacionamento o falso nacionalismo literário, a imitação estrangeira e a idolatria dos pátrios gênios. A história dá a razão de tudo. 

A interferência do componente racial: A ação fisiológica dos sangues negro e tupi no genuíno brasileiro explica-lhe a força da imaginação e o ardor do sentimento(...). Nos contos e lendas é direta a ação das três raças [branca, índia e negra] e a influência do mestiço ainda muito insignificante, a não ser como agente transformador. 


5) A História Determinista da Literatura Brasileira 

A publicação original da História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, data de 1888. A obra foi e tem sido publicada em dois volumes, mas ela se constitui por quatro livros: 

  • ao primeiro deu-se o nome de “Fatores da literatura brasileira”, com o qual o autor apresenta sua metodologia crítica; 
  • o segundo, intitulado “Primeira época ou período de formação (1500-1750)”, já aborda o movimento histórico das letras nacionais, no período colonial; chama-se “Segunda época ou período de desenvolvimento autônomo (1750-1830)”; 
  • o terceiro livro, centrado numa época cara ao autor, dado que se abandonava a colonização e produzia-se a literatura que, para ele, era a mais rica do Brasil: a da Escola Mineira; “Terceira época ou período de desenvolvimento autônomo (1830-1870)”; 
  • a quarta e última sessão, manchada, no entender de Sílvio, pelo indianismo romântico, apesar de reconhecer nela algum valor. 
Quanto à divisão dos períodos, nenhuma proposta de Sílvio foi aproveitada pelos historiadores subsequentes. Aliás, há tempo considerável só se retorna a Sílvio Romero para ilustrar equívocos de abordagem literária, o que se vê principalmente pela eleição, feita pelo crítico, de autores importantes e dos escritores insignificantes. 

Quanto aos autores e escolas, ele tem suas preferências e as declara sem o menor constrangimento. O dado problemático nele, no entanto, são os aspectos empregados para justificar os julgamentos que faz: 

  • ignora voluntariamente Pero Vaz de Caminha, pois para ele só os autores nascidos no Brasil ou os que nele viveram a maior parte do tempo deveriam figurar em nossa história;
  • inicia com Fernão Cardim, e suas anotações de viagem feitas quase ao fim do século XVI;
  • destaca com louvor a atuação do padre José de Anchieta; 
  • Padre Antônio Viera “é um português que viveu no Brasil, simboliza o gênio português com toda a sua arrogância na ação e vacuidade nas ideias, com todos os seus pesadelos jurísticos e teológicos”; 
  • Gregório de Matos “é um brasileiro que residiu em Portugal, é a mais perfeita encarnação do espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu desprendimento de fórmulas, seu desapego aos grandes, seu riso irônico”; 
  • Escola Mineira (o Arcadismo) é “talvez o período mais brilhante e original de nossa poesia”, e, embora não o diga diretamente, a opinião se baseia no encontro da riqueza proveniente da mineração, do clima ameno das cidades “históricas” (uso aspas porque toda cidade é histórica) de Minas e de uma poesia escrita por homens brancos a retratarem exemplarmente a natureza e a esboçarem nosso nativismo literário; 
  • Silva Alvarenga – “é assim um dos iniciadores inconscientes do romantismo brasileiro, não tanto por esse lado da poesia íntima, como pela cor natural de seus quadros”;
  • Tomás Antônio Gonzaga – “Vê-se que o lirista quase romântico, o amoroso sonhador conhecia o seu meio; a natureza e a sociedade não lhe eram estranhas. A poesia citada [“Lira XXVI” de Marília de Dirceu] é puramente brasileira”; 
  • A abordagem do Romantismo é a que mais chama a atenção, pois são as mais impregnadas de cientificismo , sendo a ele dedicado todo o segundo volume da História. Causam grande surpresa a exclusão da prosa ficcional e a divisão do estilo em seis fases, que, a rigor, são seis grupos temáticos ou mesmo geográficos: emanuelismo (religiosidade), indianismo, subjetivismo, sertanejismo, lirismo específico e condoreirismo;
  • “Em [Álvares de] Azevedo melhor do que em nenhum outro distingo eu os dois sintomas: 1º é ele um produto local, indígena, filho de meio intelectual, de uma academia brasileira; 2º arranca-nos de uma vez da influência exclusiva portuguesa”;
  • De seu amigo e mestre Tobias Barreto ao patamar mais importante poeta brasileiro. Prova disso é que dedica ao abolicionista mais de cem páginas, verdadeira veneração pelo homem que exprimia exatamente o espírito da época: “A eloquência de Tobias Barreto foi uma das mais belas coisas que pude apreciar na vida”; 
Em sua historiografia sobram acessórios e falta justamente o principal, que é a análise literária (é pena que na História não esteja presente o estudo que faz sobre Machado de Assis, tachado por ele de enfadonho repetidor). Daí se explica a total abominação da crítica atual por esta figura controversa, que iniciou a modernização da crítica literária brasileira pela via do retrocesso.

terça-feira, 29 de março de 2016

Teoria da Literatura I - Resumo da Aula 4:: Ficção, Realismo e Referência

Professor José Luís Jobim


1) Ficção 

René Descartes proclamava que a sutileza da ficção estimula a mente, mas considerava este um mérito desprezível, porque a ficção nos faria imaginar certos eventos como possíveis, quando na verdade são impossíveis. Ele dizia que mesmo as estórias mais fidedignas – se não alteram ou enfeitam as coisas, para adaptá-las ao gosto do leitor – quase sempre omitem as circunstâncias mais desprezíveis e menos ilustres, de modo que o resultado fica distorcido.

O teórico alemão Wolfgang Iser assinalou que, em Roma, a palavra latina fictio (ficção) era usada no Direito para alguém que cometia um crime, mas, por não ser cidadão romano, não tinha dignidade suficiente para ser processado. Por isto, era necessária a ficção, para sentenciá-lo como se fosse um cidadão romano, embora viesse a ser despojado de sua pretensa cidadania depois de ter sido sentenciado. (ISER, 1996, p. 157-178). 

Se trabalhamos numa chave em que se imagina que tudo que não existe concretamente é “ficção”, então o mundo ficcional é bem amplo. Estas formulações enquadram-se em um contexto mais abrangente de discursos que não aspiram a referir-se ao que “realmente é”, mas ao que “poderia ser”. 

A vivência do poder ser de mundos ficcionais e a apreensão dos interesses, objetivos, projetos e quadros de referência destes mundos pode alargar o nosso horizonte, incluindo nele aspectos da vida humana que nos seriam inacessíveis de outra maneira. 

Para o teórico inglês Frank Kermode, as ficções serviriam, entre outras coisas, para atribuir sentido ao tempo, ou seja, para transformar o tempo visto como mera sucessão de instantes em tempo pleno de significação humana. Como numa epopeia, o homem, ao nascer, entraria in media res, ou seja, no meio de uma estória na qual não seria o único personagem. Além disto, assinala Kermode, também morreria in mediis rebus, e, para achar sentido no lapso de sua vida, precisaria de acordos fictícios com as origens e os fins, que pudessem dar sentido à vida e aos poemas. 

Há quem deprecie a Literatura, argumentando que esta, no máximo, pode provocar um certo prazer no leitor, mas nunca produzir conhecimento. Por outro lado, na opinião do teórico alemão Wolfgang Iser, o leitor, ao confrontar-se com as convenções e normas, no texto literário, pode ter uma visão nova das forças que o guiam e orientam em sua sociedade, e que ele pode até então ter aceito sem questionar. Assim, o distanciamento gerado pelo texto pode servir para que possamos compreender inclusive a perspectiva limitada derivada deste nosso envolvimento nas formas de vida, tradições e paradigmas da cultura em que nos inserimos, sem sequer as percebermos. 

Voltando ao exemplo de Wolfgang Iser, em que, para julgar um escravo em Roma, criava-se uma ficção, se as regras não permitiam que um escravo fosse julgado, porque apenas cidadãos romanos tinham o direito de serem julgados (e o escravo não era um cidadão romano), então a transformação ficcional do escravo em cidadão serve para enquadrar o que não era previsto em um quadro de referências já estabelecido. 



2) Realismo e Referência 

No século XIX, dois movimentos literários compartilhavam a crença de que a literatura deveria imitar, reproduzir ou ser um espelho do real: Realismo e Naturalismo. Também era compartilhada a crença de que a linguagem é apenas algo transparente, através de que seria possível mostrar o real “tal como ele é”. Mas, a ideia de reprodução do real na linguagem não estaria em contradição com a própria diferença material entre o real e a linguagem? E, se a linguagem é o elemento constitutivo da obra literária é a linguagem, como podemos aceitar que a linguagem é apenas algo transparente? 

Esta relação com as formas de saber prestigiosas no XIX (positivismo, darwinismo, fisiologismo etc.) relacionava-se com as pretensões do discurso realista/naturalista de produzir um certo conhecimento sobre o real que supostamente retratavam. Em outras palavras: de algum modo os autores daquela escola supunham estar não somente reproduzindo o real, mas também dando ao leitor um conhecimento sobre ele. 

E de todo modo, no que diz respeito à escrita literária, interessa-nos assinalar aqui que a escola realista/naturalista criou uma certa forma de escrever para apresentar um efeito de realidade. Esta forma de escrever incluía, entre outras coisas, procedimentos descritivos exaustivos que supostamente concretizariam a imitação do real, através de um inventário detalhado de seus elementos componentes. A ambição daquelas escolas supunha estar dando a este leitor também um conhecimento sobre a realidade. Esta suposição entrava em conflito com a própria ficcionalidade dos personagens, mas podia ser resolvida de forma ao menos parcialmente satisfatória com a observação de que os personagens específicos podiam não ser “reais”, mas o tipo humano e social que representavam era, assim como as situações em que se encontravam no mundo ficcional, as quais encontrariam correlatos no mundo real. 

Recordemos as palavras do filósofo: “...não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” Para Aristóteles, o historiador diz as coisas que sucederam e o poeta as que poderiam suceder: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular” (ARISTÓTELES, 1973, p. 439-512).

Não é só na literatura que se fala do possível e do que não ocorreu efetivamente, pois deparamos em nosso cotidiano com uma série de formulações verbais que não se referem a coisas existentes: proposições condicionais, promessas, explicitação de desejos, especulações sobre o futuro. Estas formulações, como dissemos, enquadram-se em um contexto mais abrangente de discursos que não aspiram a referir-se ao que “realmente é”, mas ao que “poderia ser”. E, é claro, fazem parte do real.

Com efeito, há sempre um determinado número de convenções para a construção de mundo. Se presumirmos que o mundo “real” as possui e usarmos este como referência para o mundo “ficcional”, existe uma série de coisas que podem aparecer no ficcional como “derivadas do real”: nomes de personagens, espécies de animais e vegetais, eventos inseridos em certa cronologia, objetos. 

A definição de “ficcional” faz-se com frequência por oposição a um certo “real” (quer se veja este “real” como algo estável, permanente e contínuo, quer seja ele concebido como uma construção, variável conforme o quadro de referências a partir do qual é elaborada). 

O mundo ficcional é criado (e visto) a partir dos limites do chamado mundo real. Um texto é considerado “realista” porque constrói um mundo que é, de alguma forma, visto como análogo a ou derivado do mundo real. este suposto caráter analógico ou derivado que acaba sendo a característica básica atribuída aos textos “realistas”. 

Poderíamos responder que significa que não há uma reprodução idêntica, uma reduplicação deste mundo por aquele, nem um critério de validação do ficcional que exija uma correspondência necessária com o real. Isto não quer dizer, contudo, que não haja referência ao real. 

Esta referência é mais visível em certas espécies literárias como, por exemplo, o chamado romance histórico. Pessoas como George Washington, Napoleão e Getúlio Vargas aparecem como personagens do mundo ficcional e o público leitor estabelece em geral uma relação de identidade (ou não) entre a pessoa e o personagem. Isto significa também que o leitor usará critérios de validação vigentes no mundo real, para julgar o estado de coisas do mundo ficcional. 

Podemos também perceber que as crenças, desejos e ações de um personagem ficcional encontram correspondências, analogias, parentescos, ligações com outras crenças, desejos e ações de pessoas reais, ou de pessoas possíveis no mundo real. No entanto, o personagem pertence ao mundo ficcional, já que não existiu efetivamente esta pessoa singular no mundo real. 

Ao usar o par opositivo verdadeiro e falso, é frequente classificar como falsas as asserções sobre personagens do mundo ficcional. Isto porque o senso comum estabelece que asserções verdadeiras são aquelas que encontram referentes extradiscursivos no mundo real. Contudo, quem trabalha com literatura sabe que se podem fazer afirmações verdadeiras ou falsas referentes ao mundo ficcional. “Riobaldo aposentou-se e foi morar no Rio de Janeiro” seria uma afirmativa falsa em relação ao mundo de Grande sertão: veredas, por exemplo. Além disso, haveria uma série de questões suscitadas pela narrativa ficcional que também mereceriam atenção. 

O uso da primeira pessoa é um dos recursos usados, no quadro de referência de nossa cultura, para diferenciar os discursos “subjetivos” dos “objetivos”, que fazem uso da terceira pessoa. Na literatura, podemos exemplificar com o Realismo, no qual o uso da terceira pessoa pretendia corresponder a um efeito de “retratar a realidade”, efeito que não é fundamentalmente diferente no discurso histórico. 

Talvez pelo fato de o uso da terceira pessoa não designar “especificamente nada nem ninguém”, como disse o linguista Émile Benveniste (“é inclusive a forma verbal que tem por função exprimir a ‘não pessoa’”) (BENVENISTE, 1976, p. 251), o receptor capta a mensagem discursiva como se, estando ausente o emissor, esta mensagem fosse um conteúdo não marcado pela pessoalidade de quem o investiu de forma. Mas esta pessoalidade (esta “subjetividade”, se quiserem) só está ausente no efeito gerado pelo “como se fosse”: aí, a terceira pessoa pode representar “aquele que está ausente”, conforme a visão dos gramáticos árabes (BENVENISTE, 1976, p. 250). Ou, na nossa visão, pode significar aquele que deseja, através do uso deste recurso linguístico, disfarçar a sua presença inevitável como sujeito efetivo do discurso. 


Linguística II - Resumo da Aula 3: A hipótese inatista sobre a faculdade da linguagem humana – parte I

Professores Eduardo Kenedy e Ricardo Lima


  1. INTRODUÇÃO

O uso normal da linguagem humana não apresenta quase nenhuma semelhança do que se passa com os animais. Crianças muito pequenas, já aos três ou quatro anos, são capazes de muito mais do que a memorização de algumas dezenas de palavras.
A aquisição da linguagem é um fenômeno compulsório entre os humanos. As crianças não podem escolher não adquirir a língua do ambiente. A aquisição de é muito mais algo que acontece com a criança do que algo que a criança faz.
Somente situações específicas extraordinariamente anômalas, como deficiências cognitivas graves ou isolamento social severo, podem impedir o nascimento da linguagem na mente de uma criança.
A principal característica das línguas humanas, seja nas crianças ou nos adultos, é a CRIATIVIDADE, isto é, a capacidade de criar e compreender novas frases e discursos, diferentes daqueles que já produzimos ou já ouvimos. A CRIATIVIDADE é a principal propriedade das línguas naturais. Tenha atenção porque, ao contrário do que o nome sugere, “ser criativo” para a linguística não quer dizer “ser inventivo”, “ser genial” ou “ser artístico”. A criatividade é um termo técnico que se refere à nossa capacidade normal de produzir e compreender um número ilimitado de frases e discursos. Cada frase e cada discurso que proferimos ou ouvimos em nosso dia a dia é sempre uma criação inédita e única.
Você deve estar se perguntando por que isso acontece. Por que os humanos são capazes de adquirir e usar uma língua tão natural e rapidamente, mas os animais não conseguem, mesmo que sejam submetidos a longos e rigorosos treinamentos?
A resposta que a linguística gerativa apresenta para essa pergunta é a seguinte: um indivíduo humano parece possuir alguma predisposição genética para adquirir e usar a língua de seu ambiente. Isto é, essa capacidade de adquirir e usar uma língua de maneira tão rápida e natural, seja qual for a língua (português, alemão, inglês, xavante, sueco, guarani...) e mesmo que haja mais de uma língua no ambiente (como é caso das comunidades bilíngues ou multilíngues), parece ser fruto de uma disposição biológica exclusiva da espécie humana.

  1. Competência Linguística versus Desempenho Linguístico

A competência linguística humana é a nossa língua-I, ou seja, é a nossa capacidade de produzir e compreender expressões linguísticas compostas pelos códigos da língua-E de nosso ambiente.
Nossa competência linguística permanece em estado de repouso em nossa cognição quando estamos dormindo ou quando estamos pensando silenciosamente em coisas que não recrutam a linguagem. Ela só se torna ativa quando nos engajamos numa conversa, seja como falantes ou como ouvintes, ou quando escrevemos ou lemos um texto.
Uma coisa é a nossa competência linguística e outra coisa é o uso concreto que, numa situação de comunicação real, fazemos dessa competência, que é denominado desempenho linguístico, ou performance linguística, pois muitos aspectos do uso da linguagem parecem ser completamente exteriores ao nosso conhecimento linguístico, como por exemplo, o aparelho fonador humano, que fazem parte de outro domínio do corpo humano e não é neles que a essência de nossa linguagem se encontra. Prova disso é que a capacidade linguística humana pode realizar-se por outros meios, inteiramente independentes do aparelho fonador, como acontece nas línguas de sinais usadas pelas pessoas surdas.
O casal Gardner resolveu treinar a chimpanzé Washoe com palavras da LSA. Washoe aprendeu a realizar fantásticas proezas comunicativas com a LSA, mas tal desempenho em muito pouco se assemelha ao uso naturalmente criativo – no sentido técnico que já conhecemos para o termo criatividade – que crianças surdas em fase de aquisição da língua de sinais de seu ambiente (a sua língua-E) conseguem fazer. Diferentemente do que o casal Gardner imaginou, a incapacidade de Washoe ou de qualquer macaco em usar plenamente uma língua humana, oral ou gestual, não é um problema de performance, mas, sim, um problema de competência linguística.
Alex, o papagaio africano, é um caso complementar ao de Washoe. Em razão da estrutura anatômica do sistema respiratório e deglutivo, um aparelho fonador mais ou menos adequado para imitar a fala humana, dos papagaios de sua espécie, Alex conseguia produzir muitos sons idênticos aos do inglês, língua usada oralmente durante o seu treinamento. Porém, somente deter esse mecanismo de desempenho não tornou o animal apto a usar uma língua humana de maneira normal (criativa), pois a ele faltava o essencial: a competência linguística. Eles (os papagaios) são capazes de repetir um número relativamente grande de expressões que lhes foram ensinadas, mas não são capazes de produzir ou compreender uma única conversa simples, que qualquer criança de três anos trava diariamente com outras crianças ou com adultos, muito embora tenham um aparelho fonador que lhes permite uma performance vocálica parecida com a humana.
Dizemos que a competência linguística é o módulo (módulo cognitivo exclusivo da linguagem) da mente humana em que todos os conhecimentos sobre a fonologia, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semântica e a pragmática de uma língua estão armazenados.
O desempenho linguístico, isto é, o uso da linguagem, envolve a conjugação do conhecimento linguístico junto a inúmeros outros tipos de conhecimento (muitos outros módulos da cognição humana). Se a competência linguística é modular, o desempenho é necessariamente não modular, ou intermodular.

A competência modular e o desempenho intermodular

Devemos entender que a competência diz respeito apenas ao conhecimento linguístico – algo estático e isolado na anatomia modular que atribuímos à mente humana na linguística gerativa –, ao passo que o desempenho é o uso dinâmico desse conhecimento de maneira integrada a muitos outros tipos de cognição não especificamente linguística.

A competência linguística envolve muitas habilidades: o controle motor dos músculos do aparelho fonador durante a produção da fala, a nossa memória, necessária para recuperamos na mente as informações sobre as quais queremos falar; a nossa concentração, necessária para focarmos no assunto de que falamos; as nossas emoções, necessárias para nos colocarmos numa certa perspectiva em relação à pessoa com que falamos ou em relação ao assunto de que falamos; as nossas interações sociais, necessárias tanto para sabermos o que devemos e podemos falar em certos contextos, quanto para sabermos o que não devemos ou não podemos falar em noutras situações, necessárias também para sabermos inconscientemente os tipos de conhecimentos que compartilhamos com as outras pessoas presentes no ato da fala.
Para o gerativismo, linguagem e uso são interpretados como grandezas muito diferentes. Os gerativistas afirmam que existem assimetrias entre o que sabemos sobre uma língua e o que fazemos com a linguagem. Isto é, o gerativismo assume que o nosso saber linguístico não é a mesma coisa que o nosso fazer linguístico. Uma clara ilustração das assimetrias entre saber e fazer são os casos dos deslizes da linguagem.
Um deslize da linguagem, chamado em inglês de slips of the tongue, acontece quando uma forma concretamente realizada durante o desempenho linguístico é diferente da maneira como essa mesma forma deve estar representada no conhecimento linguístico.
Quando as palavras fazem parte da competência linguística, mas, por alguma razão, na hora de articulá-las, isto é, no momento do desempenho linguístico, um erro no processamento dos fonemas, aconteceu um deslize da linguagem.
Por exemplo: “Gente, está na hora de bortar o colo” (“cortar o bolo”)

Ou quando se pretende utilizar uma forma linguística, mas, no momento do desempenho, há uma falha no processamento da posição linear dos sintagmas e duas palavras trocam de lugar, ocorre um deslize de linguagem.

Por exemplo: “Ah, seu burro! Pulmão não tem peixe.” (“Peixe não tem pulmão”)

Linguagem e uso

Foi em seu livro de 1965, intitulado Aspectos da teoria da sintaxe, que Chomsky propôs claramente a separação entre competência e desempenho linguísticos. É possível dizer que, para a maioria dos gerativistas, a dicotomia chomskiana captura ainda hoje um importante fato a respeito da linguagem humana: “língua é língua” e “uso é uso”, ou seja, sabemos coisas sobre a linguagem e fazemos coisas com a linguagem. No gerativismo, as duas realidades não se confundem. Não obstante, muitos linguistas e cientistas da cognição não concordam com essa divisão teórica entre saber e fazer. Numerosos psicolinguísticas, funcionalistas e sóciocognitivistas, dentre outros estudiosos contemporâneos, afirmam que a dicotomia de Chomsky não tem razão de ser. Para Adele Goldberg (da Universidade de Princeton, EUA), por exemplo, no conjunto dos sistemas cognitivos humanos, “língua é uso” e “uso é língua”, isto é, nossa linguagem só existe pelo uso que dela fazemos e tal uso é a própria linguagem. É possível que as discussões contemporâneas sobre a oposição linguagem X uso levem a uma rediscussão da dicotomia chomskiana, seja para a sua confirmação ou para a sua superação.

Usamos o termo deslize porque se trata de fenômenos que acontecem esporadicamente durante o desempenho linguístico de uma pessoa. No caso, a REPRESENTAÇÃO linguística pretendida pela pessoa era uma, mas, no momento de sua realização concreta, ocorreu um problema de ACESSO a tal representação e a forma final produzida não correspondia à forma inicial pretendida. O fato de que os deslizes são um equívoco no desempenho linguístico e não um problema na competência dos falantes torna-se claro quando as próprias pessoas que cometem os deslizes reconhecem a assimetria entre representação e acesso e imediatamente se corrigem.
Na estrutura modular da cognição humana, as emoções não podem sercaracterizadas como componentes do módulo da linguagem e, assim, não desempenham papel na estrutura do conhecimento linguístico, o nosso saber. Não obstante, emoções são um dos inúmeros fatores que influenciam o comportamento humano e, assim, muito contribuem para a natureza da performance linguística, o nosso fazer.
O gerativista é um estudioso da competência linguística. Seu objetivo é formular uma teoria que descreva e explique o que é o conhecimento de uma língua. O uso do conhecimento linguístico de maneira integrada aos outros domínios da cognição é objeto de estudo da psicolinguística.


  1. O Problema de Platão

Platão, filósofo grego, demonstrou, em diversos momentos de sua obra, sua perplexidade diante da capacidade humana de acumular conhecimentos e habilidades, apesar da existência breve e tumultuada comum a cada membro de nossa espécie. Bertrand Russel, filósofo inglês do século XX, traduziu com grande clareza a inquietação platônica:











Transpondo para o nosso campo de estudo, a Linguística: como é possível que uma criança humana, após alguns poucos anos de contato com a língua de seu ambiente, sem passar por treinamento intensivo explícito e sem ao menos possuir um sistema neurológico completo, seja capaz de adquirir o conhecimento linguístico? Por que, aparentemente, apenas os humanos conseguem adquirir uma competência linguística? Por que os outros animais não conseguem?
Praticamente todos os conhecimentos que os seres humanos adquirem dependem de informações advindas de seu ambiente biossocial. A transmissão cultural humana não é um milagre que simplesmente acontece de geração para geração (conforme afirmaram os Sofistas). O problema de Platão nos indaga, justamente, sobre como é possível aprendermos a cultura de nosso ambiente. A aquisição da linguagem ou de qualquer tipo de conhecimento socialmente compartilhado só é possível para um organismo que seja capaz de aprender.
Animais, por exemplo, são organismos capazes de aprender diversos tipos de conhecimento, mas não o conhecimento linguístico, dentre muitos outros que lhes são inacessíveis. Por sua vez, humanos são organismos capazes de adquirir competência linguística e muitos outros tipos de conhecimento, mas logicamente há no universo muito mais do que aquilo que de fato chegamos a conhecer.
Existem várias respostas logicamente possíveis para o problema de Platão. Eis uma: as crianças aprendem a linguagem através da imitação da fala das outras pessoas. Chomsky indicou que o mero contato com os estímulos linguísticos nas interações socioculturais, seja pela pura imitação ou pela instrução explícita, não pode explicar como chegamos a desenvolver um conhecimento linguístico tão específico sobre a fonologia, a morfologia, o léxico, a sintaxe, a semântica e pragmática de uma língua natural.


  1. O Argumento da Pobreza do Estímulo

Na essência dos argumentos sofistas contra o problema de Platão estava a pressuposição de que o ser humano não possui nenhuma dotação natural para desenvolver uma cognição. De acordo com esse pensamento, os humanos seriam ao nascer como uma folha de papel em branco ou uma tabula rasa, isto é, seriam um organismo sem qualquer pré-programação para certos tipos de cognição ou de comportamento. O corolário dessa ideia é a hipótese de que a aquisição do conhecimento humano decorre exclusivamente dos estímulos a que somos expostos. Seria tão somente a experiência na interação com o mundo biossocial que inscreveria impressões sobre a folha em branco e preencheria a tabula rasa.

Chomsky formulou duas fortes objeções à hipótese da tabula rasa:

  • o primeiro argumento ficou conhecido como o problema lógico da aquisição da linguagem: os estímulos que uma criança recebe durante os anos de aquisição da linguagem são finitos, por mais ricos e diversificados que possam ser. As crianças recebem estímulos de seu ambiente durante dois, três ou quatros anos, período finito ao fi nal do qual o conhecimento linguístico parece ter sido atingido plenamente. Porém, ao fi m do processo de aquisição da linguagem, a competência linguística que a criança adquiriu não é um sistema que gere apenas produtos fi nitos. As frases e os discursos que as crianças podem produzir e compreender após a aquisição da linguagem são ilimitadas, potencialmente infinitas, e não apenas a reprodução dos padrões detectados nos dados fi nitos apresentados no estímulo. A criança não se limita a reproduzir os estímulos que recebeu, antes, ela age criativamente, produzindo e compreendendo enunciados inéditos. O problema lógico está aí: como é possível que um número finito de estímulos dê origem a um sistema que gere produtos infinitos?
    Com esse argumento, Chomsky sustenta que não é logicamente possível criar outputs infinitos a partir de inputs finitos, ou seja, é impossível criar uma competência linguística com base apenas nos estímulos linguísticos. Para ele, as crianças deveriam completar os dados da experiência com algum filtro (organismo) que transformasse o input finito num output infinito.







  • o segundo ficou conhecido como o argumento da pobreza de estímulos. O argumento da pobreza de estímulo sustenta, na verdade, que o conhecimento preciso e elaborado que a criança constrói sobre a estrutura da sua língua não pode ser deduzido unicamente a partir das informações contidas nos estímulos linguísticos, por mais ricas que sejam. Os estímulos, segundo Chomsky, são pobres porque não possuem todas as informações necessárias para a aquisição do conhecimento linguístico. De acordo com Chomsky, a criança deve deduzir por si própria uma grande quantidade de informações, sem as quais os estímulos para pouco serviriam. Um dos belos fatos sobre as línguas naturais é que elas permitem com que falemos o que quisermos, ao mesmo tempo em que nos impelem a fazê-lo de uma determinada maneira. Trata-se, portanto, de uma propriedade estrutural da língua, a qual deve ser adquirida pela criança. O argumento da pobreza de estímulo sustenta, precisamente, que uma regra complexa como a ligação de anáforas e de reflexivos tem de ser deduzida pela criança. Tal regra não pulula espontaneamente dos estímulos. Os estímulos são pobres, isto é, não possuem todas as informações necessárias para o aprendizado. A criança precisa estar equipada com uma “máquina de aprender sintaxe” muito potente para poder aprender a lógica por detrás das anáforas presentes nos estímulos.
    Além do conhecimento sobre a estrutura de frases, nossa competência linguística armazena também informações sobre o uso contextualizado da língua em situações de interação sociocomunicativa. Chamamos esse tipo de conhecimento de competência pragmática. Com essa competência, somos capazes de identificar, por exemplo, sobre o que falamos numa dada conversa, qual é o tópico do discurso, qual é o foco da informação, que dados são relevantes ou não num diálogo, que tipo de pormenores podemos desprezar num determinado assunto, e daí por diante. Nesse caso, o argumento da pobreza de estímulos irá questionar: como conseguimos simplificar ao máximo todas as infinitas possibilidades lógicas de inferência num dado momento comunicativo e nos atermos ao que de fato é pragmaticamente relevante?
    O que a criança precisa fazer para tornar-se um usuário normal da língua é intuir corretamente os sentidos das expressões com que se depara em certos momentos comunicativos, de modo a evitar a quantidade enlouquecedora de possibilidades lógicas de inferência? O filósofo Willard Van Quine (1908-2000) denominou esse problema de “o escândalo da indução”. Esse “escândalo” é o seguinte: como é possível as crianças observarem tão bem um conjunto finito de eventos de modo a fazer generalizações corretas a respeito de todo evento futuro daquele mesmo tipo? Como elas conseguem rejeitar de maneira apropriada o número infi nito de generalizações irrelevantes, embora logicamente possíveis, a partir da observação original de um evento? As crianças conseguem descobrir que o mundo funciona de uma determinada maneira, e que é essa a maneira que deve ser levada em consideração ao fazer inferências sobre o uso da linguagem.
    É exatamente essa capacidade de filtrar informações e focar-se no que é relevante que chamamos de competência pragmática. Mais uma vez, os estímulos do ambiente não fornecem todas as pistas explícitas sobre quais inferências são corretas e quais não são. As inferências devem ser processadas pela mente das crianças. Os estímulos são pobres, isto é, não detalham tudo o que é sufi ciente e necessário para a aquisição do conhecimento. Para se tornar um falante normal da língua, a criança deve possuir, portanto, em sua mente uma robusta “máquina de aprender pragmática” que possa atribuir coerência aos estímulos linguísticos e comunicativos.
    A suntuosa complexidade de nosso vasto conhecimento linguístico não é dedutível espontaneamente pelos estímulos do ambiente biossocial. Tais estímulos devem ser ativamente interpretados pela mente humana de modo a serem transformados em conhecimento. Deve haver, deste modo, algo em nossas mentes que consiga extrair informações dos estímulos e dar-lhes consistência. É isso o que propõe Chomsky com a hipótese do inatismo linguístico.