domingo, 28 de fevereiro de 2016

Linguística II - Resumo da Aula 2: Primeiros Passos do Estudo da Linguagem na Mente: Conceitos Fundamentais

Professores Eduardo Kenedy e Ricardo Lima


     1) As Duas Dimensões da Língua 

Todas as línguas humanas são igualmente bidimensionais.

Essencialmente, é na mente das pessoas que uma língua natural encontra-se armazenada e é de lá que ela é ativada para o uso, nas tarefas cotidianas de produção e compreensão da linguagem, trata-se da dimensão interior ou SUBJETIVA das línguas.

Para que uma língua natural exista de fato, é essencial que as pessoas compartilhem um léxico, e tudo o que nele está inscrito (fonemas, morfemas, palavras, expressões, significados e convenções de uso). É somente a partir de tais elementos compartilhados socialmente que a linguagem toma existência na mente de um indivíduo. Esse código objetivo compartilhado pelas pessoas é aquilo que compreendemos como a dimensão externa ou OBJETIVA.


     2) O Conceito Duplo de Língua 

O termo língua pode assumir pelo menos dois significados, sendo que língua como faculdade cognitiva e língua como código linguístico são realidades muito diferentes.:

a) O conhecimento linguístico de um indivíduo acerca de uma dada língua, ou seja, língua é a faculdade cognitiva que habilita esse indivíduo a produzir e compreender enunciados na língua de seu ambiente, uma habilidade presente na mente humana (língua-I, segundo Noam Chomsky). É a dimensão mental/subjetiva do fenômeno da linguagem, que também chamamos de cognitiva ou psicológica, é sintetizada no conceito de língua-I, em que “I” significa interna, individual e INTENSIONAL (tudo o que é interior e próprio a um dado significado);

b) O código linguístico existente numa comunidade humana, isto é, língua é o léxico e tudo o que nele está contido ou dele é derivado, algo que assume existência fora da mente das pessoas (língua-E, segundo Noam Chomsky). É a dimensão sociocultural/objetiva ou coletiva das línguas é denominada língua-E, em que “E” quer dizer externa e EXTENSIONAL (refere-se à extensão de um dado significado, isto é, diz respeito à classe de objetos a que o significado se refere).

Ou nas palavras do próprio Noam Chomsky:

Observação: Língua-I e Língua-E, respectivamente.


     3) A Língua-E 

Língua-E é o código linguístico socialmente compartilhado por uma comunidade, é a dimensão da linguagem exterior ao indivíduo. É esse fenômeno sociocultural, histórico e político que compreende um código linguístico, o que comumente se interpreta como língua ou idioma no senso comum. 

Sociocultural porque é compartilhada pelos indivíduos que integram uma mesma sociedade, com suas diversas nuances, e, dessa forma, compartilham uma cultura.

Histórico porque sempre se constitui ao longo do tempo, nas contingências da História da humanidade, em suas diversas populações ao redor do planeta. Por exemplo: Os fonemas, os morfemas, as palavras, os significados e usos do português no Brasil remontam não somente aos séculos passados da história da colonização brasileira, mas têm também origem nos séculos e milênios da história sociocultural de Portugal e do Império Romano, cuja língua, o latim, acabou dando origem ao português, ou antes mesmo da constituição do Império Romano, com as línguas pré-românicas que deixaram marcas no latim, que as retransmitiu ao português. Ao nascer, um ser humano herda um conjunto de contingências históricas e uma delas é a sua língua-E.

Política porque é promovida como uma língua-E institucionalmente, através do ensino formal em escolas e do cultivo de aprendizagem da língua como idioma estrangeiro. a Constituição Federal Brasileira, de 1988, afirma, em seu Art. 13, que a língua oficial de nossa nação é o português. Isso é uma posição política perante a história do Brasil e, em particular, perante a história de nossa cultura.

Observação importante: Nos estudos linguísticos, o léxico não é somente o vocabulário de uma língua, não é apenas o conjunto de palavras convencionalizadas numa língua-E, tal como um dicionário. O léxico é, sobretudo, a maior fonte de informação linguística necessária para a aquisição e o uso de uma língua-I. Assim, o léxico contém, é claro, as especificações sobre a relação arbitrária entre o significante e o significado de um grande número de palavras, tal como você aprendeu no curso de Linguística I, com Ferdinand de Saussure, mas contém também todas as informações fonológicas, morfossintáticas e semânticas imprescindíveis para a aquisição e o uso da língua do ambiente. Por exemplo, é no conjunto de informações codificadas no léxico do português (língua-E) que estão especificados os traços linguísticos que compõem o item “casa”, isto é, a sua pronúncia, com duas sílabas e quatro fonemas específi cos, sua classe gramatical (nome), seu gênero gramatical (feminino), seu significado (lugar destinado à moradia), dentre outras informações. O léxico é, de fato, composto por símbolos arbitrários, isto é, por signos formados pela associação convencional entre um dado significante e certo significado (no sentido de Saussure). A caracterização de uma língua como uma instituição composta por símbolos arbitrários é tudo aquilo que se define como língua-E.

Para os estudiosos da linguística gerativa, o interesse de estudo acerca das línguas-E concentra-se na descrição das informações que estão codificadas no léxico dessas línguas, recai sobre o fato de a mente humana ser capaz de adquirir essas informações, sejam quais forem, para, a partir delas, produzir e compreender expressões linguísticas no uso cotidiano da língua-I. O gerativista procurará identifi car, ao descrever uma língua-E, os traços linguísticos que estão codifi cados em seu léxico e são utilizados na formação de representações mentais, como fonemas, morfemas, palavras, sintagmas, frases e discursos.

Fora do gerativismo, muitas são as abordagens linguísticas interessadas em investigar as línguas sob a perspectiva da língua-E: fenômenos como, por exemplo, a dinâmica das relações entre, de um lado, o código linguístico e, de outro, a história, a ideologia, a estratificação sociocultural, a arte, a educação, questões relacionadas ao ensino formal do código e dos usos da linguagem considerados prestigiados, ou, ainda, podem concentrar-se nos produtos da atividade linguística, como os textos.


     4) A Língua-I 

É o conjunto de capacidades e habilidades mentais que fazem com que um indivíduo particular seja capaz de produzir e compreender um número potencialmente infinito de expressões linguísticas na língua de seu ambiente. É o conhecimento linguístico de uma pessoa, aquilo que está presente na sua mente e lhe permite usar uma língua-E para produzir e compreender palavras, sintagmas, frases e discursos.

Na acepção de língua-I, uma língua é entendida como parte do, sistema cognitivo humano. Trata-se de uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um órgão mental.

Uma dessas heranças biológicas é a faculdade da linguagem, que permite já ao nascimento, o ser humano começar a perceber e processar a língua-E de seu ambiente de modo a dela retirar informações para criar a sua língua-I, isto é, o seu conhecimento linguístico.

Uma língua-I é a forma pela qual as informações contidas no código linguístico do ambiente (a língua-E) estão representadas em nossa mente, de forma inconsciente (Instinto, para o linguista e psicólogo cognitivo Steven Pinker), é a nossa versão interiorizada das informações da língua-E, a nossa cópia particular dessa língua.

Diversos tópicos de pesquisa fazem parte da agenda dos linguistas da língua-I, como, por exemplo, as relações entre linguagem e pensamento, linguagem e memória (de longo e de curto prazo), linguagem e percepção, linguagem e patologias mentais, linguagem e estrutura neuronal, linguagem e deficiências cerebrais. 

A abordagem da língua como língua-I é, portanto, característica das ciências da cognição – e complementa-se à noção de língua-E típica das ciências sociais.

O gerativismo é uma abordagem linguística dedicada ao estudo das línguas naturais no sentido de línguas-I.


     5) Modularidade da Mente 

A linguagem é apenas um componente no meio de muitos outros componentes cognitivos existentes na mente. Uma língua-I é somente um módulo da cognição humana.

Segundo a ideia de mente uniforme, também chamada pelos psicólogos de mente holista ou inteligência única, a nossa inteligência seria um todo indivisível.

Com o conceito de modularidade – termo disseminado pelo filósofo e psicolinguista norte-americano Jerry Fodor em seu importante trabalho de 1983 – foi criada uma outra visão da mente humana, constituída, por diversos compartimentos, isto é, divide-se em MÓDULOS especializados na execução de tarefas específicas, um conjunto de inteligências especializadas e autônomas, ao qual denominamos MENTE. Cada uma dessas capacidades especializadas é um módulo mental.

Uma das provas da modularidade conceitual da mente é que um dano cerebral qualquer raramente compromete toda a cognição humana. Ou como acontece na rara síndrome de savants, que se dá quando uma pessoa possui um severo retardo mental em muitos módulos da cognição, exceto um ou dois, que curiosamente apresentam-se superdesenvolvidos.

A linguagem é um módulo porque ela possui a sua própria natureza e o seu próprio funcionamento, que são independentes dos outros módulos da mente. A linguagem humana exerce na mente a função exclusiva de produzir e compreender estruturas linguísticas, a Língua-I.


     6) Modularidade da Linguagem 

O Módulo Mental da Linguagem pode possuir seus próprios módulos internos, também chamados de submódulos.

Cada módulo cognitivo é especializado num tipo particular de tarefa mental e cada um desses módulos possui uma organização interna, caracterizada em submódulos. Esses submódulos, por sua vez, dão conta de uma tarefa específica dentro de seu módulo.

No que diz respeito ao módulo da linguagem, a ideia da modularidade estendida é útil para explicarmos o fato de que o nosso conhecimento linguístico, a nossa língua-I, é, na verdade, um conjunto de conhecimentos especializados e relativamente independentes entre si.


     7) Submódulos do Módulo Mental da Linguagem 

O módulo da linguagem é, na verdade, composto internamente por outros seis módulos: fonologia, morfologia, léxico, sintaxe, semântica e pragmática. É o conjunto e a interação desses módulos que nos tornam competentes no uso de nossa faculdade linguística, a nossa língua-I.

a) O módulo fonológico é o submódulo da linguagem especializado nas estruturas sonoras da língua. É esse o tipo de conhecimento que usamos, inconscientemente, quando reconhecemos e produzimos os sons que organizam os morfemas e as palavras, controla as informações a respeito dos fonemas que existem na língua de nosso ambiente. Essas informações dizem respeito aos traços constitutivos dos fonemas e a como tais traços entram ou não em ação para distinguir formas. Construído durante a infância e usado no cotidiano de toda a vida.

Por exemplo, conseguimos distinguir a forma da palavra bode da forma da palavra pode porque nosso módulo identifica nessa oposição o traço fonológico de sonorização, que é fisicamente produzido com a vibração de nossas cordas vocais.

Em nossa competência fonológica, sabemos que no fonema /b/ tal traço é positivo, isto é, a vibração acontece, mas em /p/ o traço é negativo. O módulo fonológico também nos mantém informados das transformações que determinado som pode sofrer de acordo com o contexto em que esteja inserido na palavra.

b) O módulo morfológico é o submódulo da competência linguística responsável por nossa habilidade de manipular morfemas. Os morfemas são os constituintes internos da palavra dotados de significação. Eles cumprem as funções de estruturar e modificar os significados no interior dos itens lexicais, bem como nos permitem reconhecer e criar palavras novas. Quando produzimos e compreendemos modificações de singular e plural, masculino e feminino, passado, presente e futuro, primeira, segunda e terceira pessoas etc., bem como quando produzimos e compreendemos palavras novas, estamos fazendo uso de nossa competência morfológica.

Por exemplo, de posse de um item do léxico como o verbo estudar, seu conhecimento tácito sobre a morfologia do português permite a você a expressão de vários significados a partir da adição e/ou subtração de morfemas a tal verbo: {estud-a-re-i}, {estud-a-mos}, {estud-a-va-m} etc. 

Por exemplo, mesmo que você nunca tenha visto até agora a palavra desmexicanização, saberá dizer qual é o seu significado: ato de deixar de ser mexicano, pois permite que decodifiquemos o significado de palavras novas, se elas estiverem estruturadas por morfemas. 

c) O módulo lexical é responsável pelo armazenamento e pela recuperação do grande número de palavras da língua que falamos, em sua forma de expressão acústica e seu significado, dar conta das palavras, sua pronúncia, seu significado e suas condições de uso.

Obs.: É o módulo lexical que interessa à linguística gerativa. Ele é a parte de nosso conhecimento linguístico especializado nas palavras. É ele que está em formação na nossa fase de aquisição lexical, na infância, e em ação durante nossa vida adulta, quando emitimos e reconhecemos itens lexicais.

Por exemplo, o fato de você conhecer uma palavra como, digamos, advogado, e saber a sua pronúncia habitual (“a-di-vo-ga-du”), o seu significado comum (“tipo de profissão que lida com leis e legislação”) e o seu contexto de uso (“descrição de uma classe de profi ssionais” ou “referência a um indivíduo em particular” etc.) é algo que se torna possível por meio do funcionamento normal do conhecimento lexical presente na sua mente.

d) O módulo sintático é responsável por nossa capacidade de produzir e compreender frases, é posto em uso cada vez que ouvimos/lemos ou falamos/escrevemos sintagmas e frases. Sabemos disso, inconscientemente, porque nosso módulo sintático controla que tipos de combinação podem ser feitas e quais não podem ser feitas entre palavras, sintagmas e orações. É um dos mais complexos e dinâmicos da linguagem, pois o número de sintagmas e frases que podemos construir com o nosso conhecimento sintático é infinito. Esse aspecto criativo do módulo sintático é uma das propriedades mais importantes da linguagem humana.

Por exemplo, se quisermos formar uma expressão com as palavras amigo, meu e o, sabemos que um arranjo possível se dá na forma do sintagma [o meu amigo], enquanto o arranjo *[meu o amigo] é impossível, conforme indica o asterisco.

e) O módulo semântico tem a função de gerar e identificar significados em expressões linguísticas como palavras, sintagmas e frases. É ele que nos torna aptos a produzir e compreender toda a intricada rede de significação entre os mais diversos tipos de expressões linguísticas, desde os morfemas até a frase.

Por exemplo, se perguntassem a você que palavra do português expressa significado oposto ao do item triste, você provavelmente indicaria a palavra feliz ou alegre. Se lhe pedissem para citar uma palavra com o significado relativamente semelhante ao de longe, você talvez citasse distante ou afastado.

f) O módulo pragmático é a fração de nosso conhecimento linguístico voltado para o contexto prático de uso da língua. Muito do que significamos tem origem em nossas intenções comunicativas, em nossas pressuposições sobre a pessoa com quem falamos e sobre o assunto de que falamos e em muitos outros fatores que não pertencem à estrutura linguística. Esse conjunto de fatores, por assim dizer, extralinguísticos é o que chamamos de pragmática. Tais significados não estão inseridos na frase citada. Eles se dão no contexto pragmático em que tais frases se inserem. O conhecimento armazenado em nosso módulo pragmático é, portanto, essencial em nossa tarefa de usar a língua de maneira situada e contextualizada, caso a caso em nosso dia a dia linguístico.

Por exemplo, se chegamos atrasados numa aula e o professor nos pergunta com voz ríspida “Você sabe que horas são?”, entendemos, pelo contexto, que isso é uma repreensão pelo atraso e não um pedido de informação sobre as horas. 




    8) Processamento Cognitivo: a interação dinâmica entre os módulos 

Todos os módulos e submódulos da mente funcionam de maneira integrada e interdependente, num processo interativo extremamente dinâmico. Há uma indefectível dinâmica da interação entre os módulos mentais. Na psicologia cognitiva, tal fisiologia cognitiva é chamada de processamento mental.
A cada vez que usamos a linguagem, recrutamos todos os submódulos linguísticos, que estão sempre em ação, um transbordando sobre o outro.